publico@publico.pt - 27 abr. 15:00
Campos de concentração
Campos de concentração
Assistimos ao intensificar de uma narrativa de desumanização que legitima a exclusão de grupos de pessoas em nome da “segurança nacional.”
1. A recente assinatura, pelo Governo, dos contratos para a construção de dois “presídios para estrangeiros irregulares” parece ter passado entre os pingos da chuva, rapidamente ultrapassado no ocupado ciclo noticioso em que vivemos. Mas não devemos deixar passar este tema, que reforça no nosso território a política autoritária anti-imigrante que cresce à escala global. Mais do que denunciá-la, vale a pena contextualizar este fenómeno numa história mais longa – a história dos campos de concentração.
2. Campos de concentração. Todos estamos familiarizados com o termo, popularizado pelos piores motivos depois do Holocausto. Talvez alguns de nós tenham visitado um destes campos, espalhados pela Europa, vários deles transformados em espaços museológicos. Mas a sua história é muito mais antiga, e muito mais atual, do que o extermínio levado a cabo pelos alemães no século passado.
Vale a pena relembrar o que são campos de concentração: espaços de detenção em massa de pessoas com base na sua identidade, a quem são negados os direitos do sistema legal de um país, resultando em altas taxas de doença e mortalidade. É uma definição abrangente, já que nem todos os campos foram iguais ao longo da história. Engloba, por exemplo, os campos onde se detiveram prisioneiros de guerra, refugiados ou opositores políticos. Nos campos, estas pessoas podiam ser expostas a isolamento, trabalho forçado, extermínio, ou a todos estes em simultâneo.
Os campos de concentração e extermínio da Alemanha nazi não foram, por isso, os primeiros da história. Hannah Arendt popularizou a ideia de que as origens dos campos estavam no colonialismo europeu, uma pista que seria seguida por vários historiadores. Ao longo dos últimos anos, inúmeros livros e artigos têm sido publicados sobre os campos “antes de Auschwitz”: desde a estratégia de reconcentración na guerra de independência de Cuba, na qual cerca de 150 mil cubanos morreram em campos de concentração espanhóis, aos campos criados pelos EUA na guerra da independência das Filipinas, em 1901. Ao longo do século XXI, os campos de concentração proliferaram pela mão dos impérios como ferramentas de poder disciplinar por todos os continentes, atingindo o seu momento mais brutal no Terceiro Reich. Como escreveria Aimé Césaire nos anos 50, o fascismo trazia para a Europa os métodos coloniais que, até lá, estavam reservados aos povos não-europeus.
O modelo do campo de concentração reinventou-se desde o fim do nazismo, mas não terminou. O elemento comum entre os centros de detenção de imigrantes nos EUA e na União Europeia, os “centros de reeducação política” na China, os campos de detenção em massa dos rohingya no Myanmar – entre tantos outros exemplos que podiam encher esta página – é o aprisionamento de pessoas com base na sua identidade. O ato é levado a cabo sob o escudo de uma “emergência” que permite a legalidade do ato enquanto, em simultâneo, se retiram os direitos às pessoas. É negada a liberdade aos detidos com base em critérios políticos, religiosos, étnicos e raciais. A desumanização alia-se à doença e à morte. Regressamos à definição de campo de concentração.
3. As notícias dos últimos meses e anos carregam consigo os legados desta história. Gaza foi transformada num campo de concentração ao ar livre pelas mãos de Israel, no culminar de uma política colonial de perseguição de décadas. Trump anunciou um plano para transformar El Salvador numa colónia penal – não apenas para encarcerar imigrantes, mas também cidadãos norte-americanos – no seguimento de uma antiga política anti-imigratória feita através de campos de detenção na fronteira. Sem esquecer o mais recente Pacto para as Migrações da UE que, como denunciou a Humans Before Borders, acentua a violência das detenções de imigrantes nos Estados-membros.
Em vésperas das eleições, o Governo português homologou os contratos para a construção de dois “presídios para estrangeiros irregulares” – centros de detenção que têm como objetivo deter e “filtrar” imigrantes, expulsando do nosso país aqueles que não passam no crivo legal imposto pelo Governo. São os ditos “ilegais”, um termo violento que torna a cidadania e direitos num privilégio de apenas alguns – aqueles que, por acaso ou sorte, nasceram aqui, e não ali. Segundo o primeiro-ministro, esta política faz parte de um plano para combater as “portas escancaradas” que, afirma, têm caracterizado o país até agora. Esta “autêntica prisão”, nas palavras de Timóteo Macedo, da associação Solidariedade Imigrante, terá um custo de 30 milhões de euros, saídos do PRR.
Não devemos ter medo de chamar as coisas pelo nome. Os dois centros que serão construídos no nosso país juntam-se à longa história dos campos de concentração
Não devemos ter medo de chamar as coisas pelo nome. Os dois centros que serão construídos no nosso país juntam-se à longa história dos campos de concentração – uma história que, ao longo dos séculos, tomou diferentes formas e feitios. Nem todos terminaram em extermínio, e é essencial distinguir as especificidades e atentados a vidas humanas de cada um. Mas fazem todos parte do mesmo sistema de violência, de Auschwitz a Gaza, de El Salvador ao Mar Mediterrâneo. Todos assentam na exclusão, discriminação e desumanização de grupos concretos de pessoas. Pessoas transformadas em “estrangeiros irregulares” e reconduzidas a “presídios.”
4. A história dos campos de concentração não pertence apenas ao passado. É, também, a nossa história. A pergunta que tanto gostamos de repetir sobre a segunda guerra mundial – “como é que foi possível?” está profundamente desatualizada. Devemos colocá-la no presente: “como é que é possível?”
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico