Observador - 28 abr. 00:18
Perceções e ameaças
Perceções e ameaças
Se a maioria da população sentir que os recursos se tornam escassos e recear o futuro, com a certeza de que os seus descendentes vão ter vidas piores, torna-se menos capaz de superar a dimensão tribal
Uma das mais fascinantes histórias do Livro do Génesis é aquela que descreve a origem da diversidade dos povos e das línguas. Quando, após o dilúvio, os homens se propuseram construir uma torre “cujo cimo atinja os céus” (Gn 11, 4), o Senhor desceu e confundiu “de tal modo a linguagem deles que não [conseguiam] compreender-se uns aos outros” (Gn 11, 7), levando a que a construção da cidade fosse suspensa.
São apontadas diferentes interpretações para estas linhas: teria sido um castigo pela tentativa de escapar a dilúvios futuros que o Senhor tinha prometido que não se repetiriam (Gn 9, 11)? Ou seria uma lição divina para que os homens aprendessem que há limites para os seus projetos (Gn 11, 6)? Ou será apenas uma narrativa etiológica para justificar a existência de diferentes povos e diferentes línguas?
A verdade é que Deus tinha dito a Noé e seus filhos: “sede fecundos e multiplicai-vos; espalhai-vos pela Terra e multiplicai-vos sobre ela” (Gn 9, 7) e isso não seria possível se se mantivessem reunidos na mesma cidade. É a incompreensão que resulta das diferentes línguas que os faz abandonar a cidade de Babel e dispersar por toda a Terra.

Pieter Brueghel, o Velho, A Torre de Babel (séc. XXI)
Com a dispersão multiplicam-se também as figuras divinas, até ao “nascimento” do monoteísmo bíblico, como o Pe. Francisco Martins descreve em A Bíblia tinha mesmo razão?. Mas esse povo escolhido que torna Yahvé o único Deus verdadeiro assenta numa identidade étnica e geográfica que só aos poucos se vai transformar:
“é no contacto com a cultura grega e, em larga medida, graças a um processo de sinergia cultural que a ideia de pertença ao povo de Israel, isto é, de ser “judeu”, vai superar o horizonte meramente geográfico ou genealógico.”
A universalidade da mensagem crist��, que na Nova Aliança “restabelece no Pentecostes a unidade de linguagem que se tinha desfeito com Babel” (At 2) e que São Paulo concretizou, acontece assim num contexto cultural e político muito distinto: após Alexandre e o domínio macedónio, no contexto de uma filosofia moral grega de cariz essencialmente universalista e em pleno império romano. Terá estado, nesse sentido, a fecundidade da mensagem cristã dependente do contexto de expansão cultural e Pax Romana?
2 A hipótese contratualistaO argumento que Jonathan Haidt apresenta em A mente justa, e que visitamos aqui e aqui, pode ser lido em harmonia com os textos sagrados. A natureza humana predispõe-nos a uma vivência em grupo, pois só dessa forma podemos assegurar a sobrevivência e multiplicar-nos. Mas tal não significa que estamos condenados ao conflito – pelo contrário, se as circunstâncias forem favoráveis, podemos encontrar formas de reconhecer a nossa humanidade comum e estabelecer uma língua comum de cooperação.
O contexto assume, assim, uma relevância fundamental, que pode ser pensada a partir das teorias contratualistas de Thomas Hobbes e John Locke. De acordo com estas teorias, a legitimidade do estado deve ser entendida como um contrato estabelecido entre os membros da comunidade ou com o governo por forma a criar um estado civil capaz de superar os problemas do estado natural. Dessa forma, o contrato social diz-nos, acima de tudo, que o governo é necessário: considerando a natureza humana, é necessário algum tipo de autoridade para regular as relações entre os homens.
O tipo de poder político, estado civil ou governo que resulta desse contrato vai depender do modo como descrevemos o estado de natureza: Hobbes imagina homens sujeitos a paixões como o lucro e a glória e em permanente competição por recursos escassos (o filósofo viveu o conturbado período da guerra civil inglesa); já Locke imagina um mundo criado por Deus com recursos abundantes para todos (é o período de maior força da colonização britânica). As consequências são evidentes: o estado de natureza de Hobbes é um estado de permanente desconfiança e conflito (é o estado de guerra de todos contra todos) pelo que o Soberano terá de gozar de um poder absoluto sobre os seus súbditos; já o estado de Locke é tendencialmente pacífico, com os indivíduos a serem incentivados a trabalhar a terra disponível e a cooperar para enriquecer, pelo que bastará um governo limitado para manter a ordem e a segurança.
O que podemos retirar da hipótese contratualista destes dois autores? Embora não se debruce sobre a natureza humana como Hobbes faz no capítulo XIII de Leviatã, Locke não tem uma visão otimista quanto aos impulsos naturais do homem. Não é isso que diferencia os dois autores. O que os distingue é que eles contemplam o comportamento humano e a necessidade de governo em contextos distintos: quando percecionamos o nosso contexto como de abundância de recursos, então há espaço para sociedades civis mais cooperantes e o poder político pode ser mais reduzido (Locke); mas se percecionamos o contexto como de escassez, entramos em modo de competição e tornamo-nos mais desconfiados, pelo que é necessário um poder mais forte (Hobbes).
Nesse sentido, o triunfo das ideias liberais não teria resultado por serem mais racionais – triunfaram porque o contexto ocidental era de confiança no futuro e de promessa de prosperidade. A exploração de novos territórios e o desenvolvimento tecnológico prometido pelas revoluções científicas e industriais permitiram que a linguagem liberal de universalidade e globalização se pudesse afirmar. Mas basta que as circunstâncias se alterem para que o lobo hobbesiano espreite – como aconteceu, aliás, nos tempos recentes de pandemia.
3 Perceções e crisesComo vimos, a obsessão com factos (mesmo que sob a forma de legos) não permite ganhar debates políticos. Os militantes dos factos até podem sentir-se moralmente melhores no final, mas revelam uma incompreensão profunda da natureza humana. Não evoluímos para nos tornarmos cientistas em busca da verdade – temos, antes, mentes morais, que respondem a perceções e narrativas. E somos particularmente sensíveis ao contexto.
Compreender os tempos políticos atuais e a mobilização das populações contra a imigração – apesar de todos os factos – exige que tenhamos em conta o contexto. Se as populações percecionarem as suas circunstâncias como de prosperidade, crescimento económico e sucesso reprodutivo, tornam-se mais abertas à mensagem universalista – e a serem cooperantes até para com aqueles que estão fora do grupo. Foi o que aconteceu nos trinta anos gloriosos na Europa e durante décadas nos Estados Unidos. Mas se a maioria da população sentir que os recursos se tornam escassos e recear o futuro, com a certeza de que os seus descendentes vão ter vidas piores, torna-se menos capaz de superar a dimensão tribal.
Ora, o que tem vindo a acontecer na Europa é, precisamente, a afluência de quatro fatores que concorrem de forma dramática para despertar o nosso lado mais hobbesiano.
Por um lado, as últimas décadas têm sido marcadas por um reduzido crescimento económico e uma expectativa desfavorável em relação ao futuro (como, aliás, o Relatório Draghi fez notar). Yascha Mounk e Ivan Krastev discutem a esse propósito sobre o suave declínio da Europa, sempre com a ameaça da China como pano de fundo.
De facto, a irrelevância da economia europeia e o marasmo dos líderes europeus geram um contexto de angústia generalizada que é difícil de ignorar e que é agravada pela ameaça militar russa que, real ou idealizada, continua presente no imaginário, sobretudo, do centro da Europa.
Em terceiro lugar, importa notar como as últimas décadas têm sido marcadas por um discurso público de catástrofe ambiental, centrado na ideia de que os recursos estão a acabar, de que o capitalismo não é a solução e de que temos de aprender a viver com menos. Este discurso, embora possa ser legítimo, ativa inevitavelmente o mecanismo de proteção e sobrevivência – e, por isso, não deixa de ser espantoso que os amantes dos factos não percebam a contradição em dizer, simultaneamente, “não há planeta B” e “os imigrantes são necessários”. Se o fim está próximo, os despojos não serão partilhados com o outro grupo: não é essa a nossa natureza.
Por último, importa considerar o processo que conduziu as sociedades atuais a uma crise demográfica sem precedentes entre os indígenas europeus, que têm optado (por diversas razões) pela não reprodução. Mas se o nosso grupo se reproduz pouco, isso significa que os outros grupos (os que se reproduzem mais) passam a ser vistos como uma ameaça. Mais uma vez, o modo de sobrevivência é ativado e dizer que a salvação está nos outros não resolve o problema – agrava-o.
O futuro da Europa depende, assim, de uma elite política mais sábia: mais capaz de compreender o contexto, mais interessada em conhecer a natureza humana e mais preocupada em resolver os problemas das populações do que em tentar criar um homem novo.
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