Observador - 28 abr. 00:03
A Gamificação da Barbárie: quando a violência se torna entretenimento
A Gamificação da Barbárie: quando a violência se torna entretenimento
Reality shows cruéis. Jogos de guerra em direto. Debates políticos que parecem lutas de gladiadores. É a Gamificação da Barbárie. Um espelho do nosso tempo.
Há algo de profundamente inquietante na forma como o sofrimento humano se transformou em espetáculo. Já não basta observar — é preciso classificar, competir, pontuar, eliminar. O entretenimento moderno vive da tensão entre humilhação e recompensa, da adrenalina de ver alguém cair, perder, ser exposto. E tudo isto, envolto em risos, emojis e likes.
Chamo a este fenómeno “Gamificação da Barbárie”. Trata-se da transformação da violência — física, verbal, simbólica — num jogo. A lógica dos videojogos, das competições de sobrevivência, dos reality shows mais extremos infiltrou-se no discurso público, nas redes sociais, nos media e até na política.
Veja-se o modo como são tratadas as guerras no espaço digital: mísseis em tempo real, drones como se fossem comandos, civis como estatísticas. A guerra tornou-se transmissível — e, por isso, consumível. Não há contexto, só espetáculo. Não há empatia, só pontuação.
Nas redes sociais, a lógica é a mesma. Ganha quem choca mais. Vence quem humilha. O algoritmo recompensa a agressividade, a polarização, a indignação performativa. Ser moderado é ser invisível.
Até o debate democrático foi contaminado. Políticos gritam uns com os outros em direto, como se estivessem num ringue. As ideias são reduzidas a memes. Os adversários, a caricaturas. Não se procura compreender — procura-se vencer. E vencer, hoje, significa esmagar.
A prova mais recente da gravidade deste fenómeno surgiu em abril de 2025, quando uma aplicação que promovia simulações de violações — transformadas em desafios partilháveis — foi banida em Portugal, após forte indignação pública. O caso gerou repulsa nacional e obrigou as autoridades a intervir. Esta plataforma não apenas banalizava o sofrimento, como o convertia num jogo com pontuações, rankings e “troféus”. Ou pior: numa performance para canais de YouTube, reels no Instagram ou desafios de influencers.
No mesmo mês, um caso em Loures chocou o país: três jovens, influenciadores digitais com milhares de seguidores, foram indiciados por crimes graves, incluindo sequestro, violação e pornografia de menores, após um vídeo da alegada agressão ter sido partilhado nas redes sociais, alcançando mais de 30 mil visualizações sem que ninguém o denunciasse. Este episódio evidencia como a lógica da gamificação — com métricas de visualizações e partilhas — pode ser aplicada a atos de violência real, transformando crimes hediondos em conteúdos virais e desumanizando as vítimas.
Este conceito não é apenas um alerta. É uma tentativa de dar nome ao que nos está a acontecer. Porque só nomeando é que podemos resistir. E só resistindo é que podemos preservar aquilo que nos torna humanos.
Não se trata de acabar com o entretenimento. Trata-se de resgatar a dignidade. De lembrar que há fronteiras que não devem ser cruzadas — nem por audiência, nem por cliques, nem por votos.
Quando a barbárie se torna jogo, todos perdemos. E o primeiro passo para sair desse jogo… é recusar jogar.
*Este artigo integra o universo conceptual da obra “O Futuro da Humanidade”, da autoria de Pedro Benamor Marvão, protegida nos termos do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.