Maria J. Paixão - 27 abr. 15:52
Lembra-me um sonho lindo
Lembra-me um sonho lindo
Opinião de Maria J. Paixão
Cinquenta e um ano depois da madrugada pela qual esperava o povo português, sufocado pela mais longa ditadura da Europa, sente-se no ar a tensão caraterística dos momentos de viragem. O legado de abril conhece hoje uma declarada investida reacionária sem precedentes.
Do longo abril de 74 a 76 herdámos, sobretudo, o Sonho. Como magistralmente canta Sérgio Godinho, chegámos a abril de 1974 com o peso do passado e a sede de quem não teve nada e teve a vida parada. Essa sede imensa, que "só se estanca na corrente", abriu um período revolucionário intenso, em que que milhões de pessoas, pela primeira vez, quiseram ter a vida cheia. Sonhou-se tudo, sem inibições e com coragem. Sonhou-se tudo porque, depois de meio século de opressão da imaginação, sonhar era um imperativo.
Com o Serviço de Apoio Ambulatório Local sonhámos casas para todos e ousámos superar as hierarquias sociais formais, com a população a participar ativamente no processo. A colaboração entre as brigadas de arquitetos e as associações de moradores produziram dinâmicas ímpares, referência internacional em matéria de urbanismo. Com o Serviço Médico à Periferia sonhámos saúde para todos, fazendo chegar ao "Portugal profundo" os cuidados médicos de que a ditadura o havia privado. Em autorregulação, os jovens médicos deslocaram-se para o interior do país, empenhados em construir uma comunidade solidária e justa, em que todas as pessoas são respeitadas e têm acesso a cuidados de qualidade. Com as campanhas de alfabetização sonhámos educação para todos, imbuídos num espírito emancipatório alicerçado na solidariedade. Num país colossalmente atrasado, procurou-se fazer chegar aos oprimidos pelo antigo regime a oportunidade de aprender a ler e escrever e abrir aos seus filhos um novo mundo de esperança. Com o Serviço Cívico Estudantil, sonhámos uma comunidade fraterna, possibilitando aos estudantes servir e aprender com as dificuldades das populações mais vulneráveis.
Evidentemente, nenhuma destas iniciativas evitou suscitar tensões sociais e resistências. Não se trata aqui de romantizar o passado, mas tão-só de notar a vitalidade e efervescência da sociedade portuguesa durante o longo abril. Os tropeções e erros, sempre inevitáveis num processo de transformação social, eram especialmente inevitáveis numa sociedade que tinha vivido oprimida durante quase meio século e na qual, por isso mesmo, havia uma urgência incontrolável. Independentemente desses avanços e recuos, a revolução abriu em Portugal um período extraordinário de experimentação – sonhámos tudo com a ânsia de quem não tinha tido nada. A revolução foi, por isso, um momento de prefiguração, em que se ensaiaram modos alternativos de viver em comunidade, com casas, saúde e educação para todos. Na vanguarda progressista da Europa, fomos, inclusive, atração para os denominados "turistas revolucionários": intelectuais, jornalistas, artistas… que vieram a Portugal ver e participar na mais efervescente transformação social decorrida no continente europeu nos anos setenta.
Cinquenta e um anos depois, foi precisamente o Sonho que perdemos. Rapidamente engolido pela "normalidade" neoliberal da Europa de Thatcher, o fervor experimental que ambicionava construir uma comunidade solidária deu lugar à tecnocracia europeia, à obsessão com a contabilidade austera e ao servilismo pacóvio. Os valores de abril foram absorvidos pelo movimento de atomização das sociedades ocidentais da viragem do século, substituindo a liberdade emancipatória pela liberdade individualista. Outrora farol de uma alternativa de Europa solidária, Portugal assumiu a linha da frente da subserviência aos ditames dos "mercados internacionais" (mediados, tantas vezes, pela elite política europeia), em prejuízo de um povo condenado a viver "à rasca".
Esta decadência generalizada criou as condições ideais para a reemergência de movimentos reacionários de extrema-direita. A imagem paradigmática do resultado deste percurso histórico foi a ação desestabilizadora levada a cabo por grupos neofascistas durante as celebrações populares do 25 na passada sexta-feira. As tendências fascistas destes e outros grupos e milícias nunca desapareceram em Portugal; todavia, tais grupos estiveram, estes cinquenta anos, remetidos para o submundo das ideologias párias. A arrogância raivosa com que difundiram a violência pelas ruas de Lisboa no dia mais celebrado do ano são sintomáticos do tempo em que vivemos.
Este 25 de abril, as ruas foram um laboratório do espírito do tempo. A participação popular nas celebrações foi significativa, contrapondo-se à aberrante recusa do governo em participar na mais importante celebração nacional, escudando-se no luto pela morte de um chefe de Estado estrangeiro (independentemente da opinião pessoal que se tenha sobre o Papa Francisco, num Estado laico é apenas como Chefe do Estado do Vaticano que ele deve ser considerado pelos órgãos de soberania). Ao mesmo tempo, todavia, as celebrações populares foram, pela primeira vez, marcadas por agressões perpetradas por elementos da extrema-direita, declaradamente saudosistas do autoritarismo.
O Sonho de abril foi desconstruído e mercantilizado. Despido da sua essência utópica, deu lugar a uma sociedade em que a ideia de comunidade foi substituída por um aglomerado de indivíduos em competição permanente, em que a habitação se tornou uma emergência nacional, em que a saúde pública e universal é progressivamente desmantelada e em que a educação sucumbe perante os imperativos da austeridade neoliberal. Não estranha, por isso, que a extrema-direita tenha ocupado o espaço vazio deixado pelo Sonho que se perdeu, apoiando-se numa retórica que reivindica uma comunidade nacional coesa, a reinstituição de uma moralidade religiosa agregadora e o regresso de um poder soberano forte, que faça frente a forças externas. A resistência à raiva destrutiva e ao ímpeto autoritário da extrema-direita só pode nascer, portanto, do resgate daquele Sonho perdido.
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