observador.ptObservador - 28 abr. 00:17

Habitação: o país não é socialista nem neoliberal

Habitação: o país não é socialista nem neoliberal

Todos concordamos que é necessária estabilidade regulatória e fiscal no mercado da habitação, não compaginável com mudanças em cada miniciclo político. Serão os principais partidos capazes de o fazer?

 Já tive ocasião de escrever que estou bastante cético em relação à solução política que irá resultar destas eleições legislativas. Não serão as eleições aquilo que dará mais estabilidade política ao país. Mas ao menos aproveitemos para que sirvam para debater algumas das políticas mais importantes nos próximos anos e uma delas é, sem dúvida, a habitação.

Temos um ministro da coesão territorial, Castro Almeida, que acaba de afirmar que “o país não é socialista, o mercado é que deve fazer o preço das casas.” Esta afirmação tem vários problemas. Aparentemente Castro Almeida considera que a habitação é uma mercadoria como o pão e o leite, produzidos em mercados competitivos, em que o Estado e as autarquias não devem intervir. Acontece que não é. A habitação é uma necessidade humana fundamental para a qualidade de vida e tanto assim é que a Constituição lhe dedica especial atenção. Outro problema é que Castro Almeida considera implicitamente o mercado como uma abstração onde vigora apenas a lei da oferta e da procura. Ora qualquer mercado é estruturado por um conjunto de instituições e de leis que determinam o seu funcionamento. O que é a nova lei dos solos, que defende, e que facilita a transição de terrenos rústicos para urbanos, que não uma alteração nas regras de funcionamento do mercado? Ou seja, o mercado da habitação não é exógeno à política de habitação, mas também construído por este, daqui a contradição da afirmação do ministro.

A ideia, perigosa, que apenas o mercado é que deve fazer o preço das casas, deve ser levada às últimas consequências para se perceber o que significa. Já aqui abordei a crise da habitação que é uma bomba relógio prestes a explodir se não houver políticas públicas adequadas e sustentadas no tempo para a enfrentar. Embora o problema seja geral é mais grave em Portugal onde desde 2015 os preços das habitações subiram 68% quando em média na União Europeia subiram 37%. Deixar o mercado livre, significa aceitar um processo de gentrificação ainda mais acelerado das nossas cidades, onde já não apenas as classes mais desfavorecidas, mas a classe média baixa e a classe média estarão condenadas ou à emigração ou à suburbanização, pois não conseguem competir, nem na aquisição nem na renda, com diferentes tipos de procura: para airbnb, para construção de novos hotéis, para especulação imobiliária e para não residentes com maior capacidade aquisitiva que os portugueses. A opção política clara a fazer é se pretendemos subordinar a habitação exclusivamente à dinâmica do crescimento do turismo excluindo os residentes nacionais, ou se queremos compaginar o turismo com políticas públicas que promovam o direito à habitação, a coesão social e a inclusão de cidadãos nacionais de diferentes estratos sociais nas nossas principais cidades.

Tem havido algum debate sobre o tópico da habitação e ele consta dos programas dos partidos políticos que, em geral, reconhecem como problema essencial do país. Porém, esse debate não tem sido em geral sustentado por dados empíricos. Se o fosse facilmente se perceberia que Portugal é dos países que menos gasta (em percentagem do PIB) em políticas públicas de habitação. É dos países que tem menor peso de parque habitacional público ou de “rendas sociais”, e essa diferença é abissal para a maioria dos países europeus que não são propriamente socialistas (e.g. Áustria, Finlândia ou França). Raramente os partidos clarificam de onde vem o financiamento para as suas propostas no domínio da habitação. Várias vezes referem a necessidade de parcerias com os municípios, mas também não se percebe como se implementam essas parcerias. Vários partidos referem a necessidade de aproveitar parte do parque habitacional devoluto, mas ninguém parece sugerir a obrigatoriedade dos municípios revelarem qual a utilização que estão a dar ao principal instrumento que têm de combate a esta situação que seria adotarem uma taxa de IMI agravada a casas degradadas e devolutas. Mais transparência seria benéfica.

Apesar destas semelhanças há diferenças que importa assinalar. No essencial os partidos de direita (PSD/CDS e Iniciativa Liberal) consideram que a solução para o problema habitacional passa por medidas que afetam a oferta privada de construção de nova habitação, diminuindo a burocracia associada ao licenciamento, convertendo solos rústicos em urbanos, e aplicando os fundos europeus para a construção, em parceria com os municípios. Não consideram relevante restrições associadas ao alojamento local, tendo já o governo AD regredido nesta dimensão. No essencial advogam que a defesa irrestrita do direito de propriedade deve prevalecer sobre medidas que podem atenuar esse direito. Preveem parcerias público-privadas na construção de habitação e algumas medidas de impacto menor ao nível da fiscalidade (IMT, IMI, imposto selo) para incentivar a aquisição de habitações por parte dos jovens. Se algumas medidas de desburocratização merecem ser ponderadas, outras no campo fiscal parecem de eficácia duvidosa como a redução do IVA da construção para 6%, o que pode ter um impacto residual no preço das casas novas dado que o que determina a variação dos preços, e a repercussão do imposto, são as elasticidades da oferta e da procura. A ambição em relação ao papel do Estado no setor é muito pequena. A nova AD, parece satisfeita em criticar o PS por não ter conseguido executar o que prometeu no PRR na construção de novas habitações e mantem a promessa já feita anteriormente de para além das 26.000 casas previstas no PRR adicionar mais 33.000 que se candidataram ao PRR e não obtiveram financiamento. Ora este total de 59.000 novas casas, mesmo que seja conseguido, não é mais do que 1% do nosso parque habitacional ou seja quase nada.

De entre os partidos de esquerda é dada maior prioridade ao problema da habitação e isso nota-se quer no conjunto mais exaustivo de medidas que propõem, e que afetam a oferta e a procura, quer na terminologia usada. O PS define a habitação como “o maior desafio nacional”. Pretende criar instrumentos permanentes de financiamento de construção de habitação pública, embora não avance com detalhes sobre a forma destes instrumentos. Defende a reposição da regulação do alojamento local e que se incentive a sua passagem a arrendamento de alojamento permanente. Pretende rever a fórmula de cálculo de atualização das rendas de forma a considerar a evolução dos salários. Tem algumas propostas interessantes e outras que não fazem muito sentido como a afetação de parte dos dividendos da CGD à política de habitação. O Livre começa com a necessidade de “garantir o direito à habitação: com prioridade à pública e cooperativa”. E abre logo com dois objetivos, o de criar o serviço nacional de habitação, como pilar do Estado social, e o de alcançar 10% de habitação pública ou de arrendamento acessível em 2040, começando pelas tais 59.000 casas, mas continuando a aumentar a oferta pública neste período até às 600.000. No contexto europeu alcançar 10% não é de modo nenhum um valor excessivo.

Estamos em campanha eleitoral. É natural que os partidos mostrem as suas diferentes propostas. Mas, voltando ao tema do nosso anterior artigo o que é essencial – após as eleições que ditarão um parlamento fragmentado sem maioria absoluta de nenhum partido – é identificar as possíveis convergências. Penso que todos concordamos que é necessária alguma estabilidade regulatória e fiscal no mercado da habitação, que não é compaginável com mudanças em cada miniciclo político. Serão os principais partidos capazes de o fazer? Ou estamos condenados à ingovernabilidade e à incapacidade de verdadeiras reformas?

Na habitação, como noutras áreas, é importante perceber que o país não é “socialista” nem salazarista, no sentido de congelar as rendas, algo que ninguém defende, mas que a inércia ou a receita neoliberal para o problema da habitação é o caminho para o desastre e para a explosão social.

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