observador.ptObservador - 28 abr. 00:03

O futuro da Gronelândia

O futuro da Gronelândia

O mundo em que nós vivemos merece que as autocracias, como a China e a Rússia, não vejam os seus avanços recompensados.

Em Março de 2025, o Presidente dos Estados Unidos da América (EUA) insistiu na indispensabilidade da pertença da Gronelândia à América por questões de segurança. Aliás, disse que irá até “aonde for preciso” para assumir o controlo da ilha. Irão perceber em que medida é que Trump me faz lembrar, nesta questão, o secretário de estado da administração de Woodrow Wilson, Robert Lansing, quando advertiu a Dinamarca sobre a necessidade de demonstrar responsabilidade e firmeza da protecção das Índias Ocidentais Dinamarquesas relativamente às provocações de potências notoriamente agressivas. Deixando de lado as reações dos dinamarqueses e dos habitantes do território ártico, argumentarei que o que quer Trump é consistente com um histórico de preocupação dos presidentes dos EUA com a segurança nacional e internacional. Aproveitarei também para fazer uma analogia com parte daquilo que se tem passado no Canal do Panamá, região que, décadas ter sido vendida ao Panamá, ficou sujeita à rapina de pelo menos uma potência revisionista, que é a República Popular da China.

A importância estratégica da Gronelândia

De acordo com Thomas H. Henriksen, autor do artigo “Reaching for Greenland”, publicado a 24 de janeiro de 2015 no site do Instituto Hoover, a Gronelândia é, sem dúvida, um território atractivo por pelo menos três razões: geograficamente, está muito próxima do Círculo Polar Ártico; possui recursos minerais abundantes; e é um ponto de passagem para rotas de navegação em expansão.

Segundo o site do Conselho do Ártico (Arctic Council), o número de navios que circulam na região do Ártico aumentou 37% entre 2013 e 2023, o que representa um acr��scimo de 500 embarcações em números absolutos. É importante lembrar que os navios contabilizados podem ter atravessado a área mais do que uma vez por ano.

A diminuição dos níveis de gelo, ou o derretimento progressivo dos glaciares, já está a facilitar a abertura de novas rotas entre portos europeus e asiáticos. Isso representa uma oportunidade para a exploração de vantagens comerciais por diversas potências, além de poder configurar um cenário cada vez mais evidente de competição pelo domínio das vias navegáveis do extremo norte.

A China tem demonstrado um interesse cada vez mais assertivo pela Groenlândia, onde busca intensificar os seus esforços de mineração e tirar proveito das novas rotas que atravessam o Ártico. Em Novembro de 2024, Pequim e Moscovo firmaram um acordo para desenvolver conjuntamente rotas de navegação na região — medida que pode ter sido, em parte, uma resposta ao bloqueio, por parte do Pentágono, à tentativa chinesa de financiar três aeroportos na Gronelândia.

O derretimento de glaciares e das camadas de gelo deverá encorajar uma crescente exploração de petróleo, gás natural e a extração de minerais extremamente valiosos — desde que certos desafios, como limitações e atrasos tecnológicos, implicações ambientais, preocupações com a relação custo-eficiência, bem como dinâmicas políticas e legais complexas, sejam superados.

Dentre esses minerais, destacam-se o disprósio, o neodímio, o praseodímio e o térbio, altamente valorizados por sua relevância no desenvolvimento de novas tecnologias. Em particular, o neodímio e o praseodímio são essenciais na produção de ímãs utilizados em motores e geradores elétricos, presentes em turbinas eólicas e veículos híbridos. Já o disprósio e o térbio, quando adicionados aos anteriores, aumentam a força magnética, contribuindo para a durabilidade desses produtos.

A mineração na Groenlândia possui uma história de cerca de um século e meio, tendo-se destacado, no passado, pela extração de carvão e urânio. Apesar da concentração de minerais ser relativamente baixa, a região é rica em elementos cruciais para o fabrico de armamento, telemóveis, computadores, equipamentos médicos e baterias — além dos já mencionados.

A China detém um quase-monopólio sobre a exploração de alguns dos minerais mais raros do mundo, colocando os Estados Unidos e outros países em desvantagem na corrida pelas tecnologias de ponta. Por isso, variáveis como o clima, a infraestrutura limitada e a reduzida densidade populacional devem ser encaradas como obstáculos a serem superados. É nesse sentido que o presidente Trump deverá incentivar acções para atrair investidores e indústrias extrativas, de modo a fortalecer a presença dos EUA na região e nesse setor estratégico.

Já aconteceu antes: as Índias Ocidentais Dinamarquesas

Ainda em meados do século XIX, vários diplomatas norte-americanos alertaram William Seward, então secretário de Estado na administração de Abraham Lincoln, de que as Índias Ocidentais Dinamarquesas eram vulneráveis aos desígnios aquisitivos da Grã-Bretanha, da Áustria e de outras potências europeias. A Guerra Civil Americana, que durou de 1861 a 1865, despertou a atenção do presidente Lincoln e do seu secretário de Estado para os perigos de uma costa atlântica desprotegida e exposta a pretensões expansionistas — ainda mais considerando que os EUA eram a única potência naval sem território nas Caraíbas. O receio de ver “navios por todo o lado”, especialmente chineses e russos, também motivou, como hoje se sabe, o presidente Lincoln a considerar a aquisição das Índias Ocidentais Dinamarquesas, sob soberania da Dinamarca desde o século XVIII. Contudo, o assassinato de Lincoln e a tentativa de assassinato de Seward adiaram as negociações para a compra das ilhas.

Em 1867, Seward elaborou um tratado com a Dinamarca para comprar duas das três ilhas, São Tomás e São João, por 7,5 milhões de dólares. Este tratado incluía três garantias principais: a realização de um referendo sobre a cessão das ilhas; a proteção das liberdades e propriedades dos habitantes; e a possibilidade de escolha entre as cidadanias norte-americana e dinamarquesa. Apesar de o tratado ter sido prontamente ratificado pela Dinamarca, não sobreviveu ao clima de paixões e animosidades políticas que então dominava o Senado dos EUA, numa altura em que se cogitava seriamente o impeachment do presidente Andrew Johnson (antigo vice-presidente de Lincoln).

As negociações foram retomadas no final do século XIX e, em 1902, foi divulgado um novo tratado para a compra das três ilhas: São Tomás, São João e Santa Cruz (em inglês, “Saint Croix”). Desta vez, foi a Dinamarca que se recusou a ratificar o acordo, alegando que o documento não incluía a garantia de um referendo sobre a venda das ilhas. O consentimento do Senado dos EUA e a ratificação pelo presidente Theodore Roosevelt não foram suficientes para concretizar a transferência de soberania das Índias Ocidentais Dinamarquesas.

A abertura do Canal do Panamá, em 1914, e a possibilidade de os EUA serem arrastados para uma guerra contra as Potências Centrais, incluindo a Alemanha, reforçaram, do ponto de vista americano, a importância estratégica das Índias Ocidentais Dinamarquesas. As ilhas eram vistas como essenciais para: proteger as rotas de navegação no Mar das Caraíbas; garantir a segurança do Canal do Panamá; e projetar o poder naval dos EUA nessa região. Também devido ao valor comercial que a abertura do canal conferiu às ilhas, o embaixador da Dinamarca comunicou ao então secretário de Estado dos EUA, Robert Lansing, que a venda das ilhas não estaria sujeita a qualquer tipo de negociação. Pouco depois, Lansing admitiu ao diplomata dinamarquês que os EUA tomariam as ilhas à força se a Dinamarca “desistisse” delas e permitisse que uma outra potência europeia, como a Alemanha, tomasse o seu lugar.

Em Janeiro de 1917, os EUA e a Dinamarca ratificaram a “Convenção entre os Estados Unidos e a Dinamarca para a cessão das Índias Ocidentais Dinamarquesas”. Esta convenção garantiu a “cidadania dos EUA” a todos os habitantes dessas ilhas que não optassem por manter a cidadania dinamarquesa. No entanto, a posição do Departamento de Estado era de que os habitantes das Índias Ocidentais Dinamarquesas deveriam ter a “nacionalidade” americana, mas não a “cidadania” plena. Em 1932, o Congresso dos EUA atribuiu oficialmente a cidadania americana a todos os nativos dessas ilhas, então já referidas como Ilhas Virgens Americanas. É importante destacar que essa “cidadania estatutária” pode ser revertida pelo Congresso, e que o Tribunal de Apelações dos Estados Unidos para o Circuito do Distrito de Columbia (“United States Court of Appeals for the District of Columbia Circuit”) declarou que a cidadania por nascimento em solo norte-americano não se aplica automaticamente a territórios incorporados, como é o caso das Ilhas Virgens.

O que quer Trump e o que quiseram Jefferson, Lincoln e Carter

Se quisermos continuar a percorrer a história da diplomacia e da política externa norte-americanas, podemos recordar que Thomas Jefferson, o terceiro presidente dos EUA, após a compra do território da Louisiana (então pertencente à França), propôs a aquisição de Cuba. Nas palavras de Lawrence Kadish, que podem ser lidas no artigo “Trump’s ‘Crazy’ Ideas Not So Crazy After All”, disponível no site do Instituto Gatestone, vale a pena refletir: “Pensemos só o quanto os cubanos estariam a prosperar agora, política e economicamente, se esse acordo tivesse ido em frente.”

Como afirma o historiador Stephen Press, citado por Kadish no mesmo artigo, John Quincy Adams, enquanto secretário de Estado, “negociou o perdão de uma dívida à Espanha em troca da Flórida”; o secretário de Estado William Seward adquiriu o Alasca. “O que o Sr. Trump propõe é consistente com esta tradição americana”, bem como com as fronteiras atuais dos Estados Unidos. Aliás, cerca de 40% do território norte-americano resulta de aquisições de soberania. Segundo Press, a história demonstra que existem benefícios concretos desse tipo de abordagem — benefícios dos quais os habitantes do Alasca jamais teriam usufruído se ainda estivessem sob soberania russa.

Portanto, aproximar mais os gronelandeses dos norte-americanos e negociar um acordo de aquisição com apoio financeiro e subsídios económicos poderia, na mesma lógica “ser mais benéfico para todas as partes”.

O caso do Canal do Panamá

Na década de 1970, o presidente Jimmy Carter fez com que os Estados Unidos abdicassem do controlo do Canal do Panamá, transferindo-o para o Panamá, sob a condição de que o canal permanecesse uma área neutral — como está previsto no artigo 1.º do Tratado sobre a Neutralidade Permanente e a Operação do Canal do Panamá (“Treaty Concerning the Permanent Neutrality and Operation of the Panama Canal”).

Durante a presidência de Juan Carlos Varela, o Panamá virou-se robustamente para a China: o país da América Central cortou relações diplomáticas com Taiwan, que não é reconhecido pela República Popular da China, em 2017, e aderiu à Nova Rota da Seda (“Belt and Road Initiative”), a estratégia de desenvolvimento global de infraestruturas do Partido Comunista Chinês (PCC) que pressupõe o investimento em países para expandir a influência económica e política da China. A necessidade dos projectos e a transparência dos contratos foram logo questionados assim que o presidente Varela se comprometeu a avançar com a construção de uma quarta ponte que atravessasse o Canal, de uma linha férrea de alta velocidade que alcançasse o interior do Panamá e de um terminal de cruzeiros.

Segundo a General do Exército Laura Richardson, do Comando Sul dos EUA, que testemunhou, a 7 de Fevereiro de 2023, perante o Comité dos Serviços Armados da Câmara dos Representantes (dos EUA), iniciativas chinesas como o financiamento de um porto de contentores de 3 biliões de dólares, o estabelecimento de uma estação de monitorização espacial perto do Estreito de Magellan e a compra de operações de mineração de lítio na América Latina, representam riscos crescentes para a segurança dos EUA. Ainda segundo esta militar, este tipo de actividades chinesas são uma “marcha implacável” para substituir os Estados Unidos como líder da região.

O que quis Truman e alternativas

O presidente Harry Truman também quis adquirir a Gronelândia, tendo invocado razões muito semelhantes, senão mesmo iguais, àquelas que são invocadas pela administração Trump. Depois dos dinamarqueses terem recusado a proposta, o presidente Truman recuou e, não obstante, concluiu o Acordo de Defesa da Gronelândia, em 1951, que conferiu aos EUA direitos e acesso de criação de bases militares.

Segundo Daniel Fried, que escreveu o artigo “On Greenland, Trump’s choice is warmed-over McKinley or a landmark security deal”, publicado, a 24 de Fevereiro de 2025, no website do think-tank Atlantic Council, a administração Trump, ao invés de propor a compra da Gronelândia pelos EUA, poderia actualizar aquele acordo ou, com base no mesmo, colocar na agenda a assinatura de um outro novo que dê aos Estados Unidos o acesso militar e um esquema para partilhar custos, que evitaria que este país fosse sujeito a mais fardos financeiros unilaterais associados a projectos de infraestrutura militar, tais como a construção e a manutenção de bases submarinas. Para além disso, as conversas que Fried teve com especialistas e com dinamarqueses assinalam que, caso os EUA revelem interesse na exploração de minerais raros e de petróleo e gás natural, ou se achem necessária ou adequada a expansão do volume ou do número de bases militares na Gronelândia, as suas ambições seriam aceites de bom grado.

Compreendo o plano que a administração Trump tem para a Gronelândia, até porque muito daquilo que se está a passar lá me faz lembrar episódios da história em que os EUA tiveram de intervir para que a circulação nos mares não fosse condicionada pelo comportamento faminto dos antigos impérios. O mundo em que nós vivemos merece que as autocracias, como a China e a Rússia, não vejam os seus avanços, incluindo aqueles que ameaçam directamente a soberania de outros países e a livre circulação em rotas marítimas, ser recompensados. Mas alternativas no sentido de aproximar os EUA da Gronelândia também podem ser mais viáveis.

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