Observador - 28 abr. 00:15
A herança geopolítica do Papa Francisco
A herança geopolítica do Papa Francisco
O pontificado de Francisco deixa como marca indelével a garantia de que, apesar de crises internas sem precedentes, prevaleceu a unidade – e com ela, a continuidade da missão universal da Igreja.
A análise da ação geopolítica de uma figura religiosa requer metodologias que transcendem a avaliação do poderio militar ou económico, requerendo um enfoque sobretudo em soft power e influência global. Ainda que um líder religioso não disponha de exércitos — como ironicamente questionara Stalin ao desdenhar “quantas divisões tem o Papa?” — a sua capacidade de moldar eventos políticos não pode ser subalternizada. A Santa Sé, embora careça de hard power, exerceu historicamente uma considerável influência diplomática e cultural, influenciando correntes de pensamento, mobilizando fiéis e intervindo em crises globais. Um método efetivo para determinar essa influência é examinar como as suas iniciativas espirituais se repercutiram no cen��rio internacional e que mudanças político-sociais decorreram da sua liderança pastoral. Em síntese, analisa-se a autoridade moral e a rede global de seguidores que conferem peso às ações e pronunciamentos da Santa Sé.
Um exemplo paradigmático dessa dinâmica foi o pontificado de João Paulo II (1978–2005). A atuação do Papa polaco demonstrou, de forma concreta, como um líder religioso pode influenciar os rumos geopolíticos da história. João Paulo II abraçou a missão de enfrentar a opressão comunista no Leste europeu, onde nascera. Em junho de 1979, numa peregrinação histórica à Polónia, repetiu as palavras que proferiu no início do seu pontificado na varanda da Basílica de S. Pedro e bradou perante a multidão “Não tenham medo! Abram as portas a Cristo”, insuflando motivação, coragem e união à resistência anti-soviética. O seu compromisso espiritual e político alimentou movimentos democráticos sindicais como o Solidarność (Solidariedade) de Lech Walesa, expondo a falta de legitimidade do regime comunista. Em pouco mais de uma década, o Muro de Berlim ruiu e a Guerra Fria conheceu o seu fim, praticamente sem derramamento de sangue. Analistas e protagonistas da época creditam substancial parcela desse desfecho à influência do Papa. O próprio Mikhail Gorbachev, último líder da URSS, reconheceu que “o colapso da Cortina de Ferro teria sido impossível sem João Paulo II”. De modo semelhante, Walesa – líder sindical e político polaco e Nobel da Paz – chegou a atribuir “50%” da queda do Muro de Berlim à atuação de João Paulo II. Tal avaliação não diminui a complexidade dos fatores envolvidos, mas atesta que a liderança moral e espiritual de Karol Wojtyla foi catalisadora na erosão da ideologia comunista na Europa do Leste e na consequente conclusão da Guerra Fria. Este caso emblemático indica a metodologia: comparar objetivos proclamados pelo líder religioso e eventos políticos subsequentes, buscando correlações fundamentadas em testemunhos, documentos e análises históricas. No caso de João Paulo II, há consenso de que a sua herança geopolítica inclui o papel decisivo que exerceu para enfraquecer o comunismo e promover a liberdade nos países sob órbita soviética.
Com esse precedente histórico-metodológico, pode-se aplicar uma abordagem análoga ao Papa Francisco, identificando e examinando os traços geopolíticos do seu pontificado. Se João Paulo II foi o “Papa da Guerra Fria” por excelência, avaliemos de que forma Francisco — um Papa do sul global, eleito em 2013 — imprimiu sua marca geopolítica no tabuleiro internacional.
2 Atuação do Papa Francisco: sinodalidade e unidade da Igreja universalO Papa Francisco emergiu rapidamente como líder religioso com uma ampla agenda geopolítica. Manifestou posicionamentos e iniciativas de impacto global em diversas frentes: foi voz influente em defesa de migrantes e refugiados, denunciando a “globalização da indiferença” diante das crises humanitárias; mediou discretamente a reaproximação diplomática entre EUA e Cuba em 2014; advogou por justiça social e económica criticando o capitalismo selvagem; e promoveu a consciencialização ambiental com a encíclica “Laudato Si”. Diversos observadores notam que Francisco se empenhou num leque diversificado de questões internacionais, do clima às desigualdades, ampliando o escopo de envolvimento político do papado.
Dentro desse conjunto multifacetado, destaca-se uma iniciativa peculiar de Francisco que combina uma dimensão eclesial interna e implicações geopolíticas: a convocação do Sínodo sobre a Sinodalidade (2021–2024). Para além de se focar em problemas específicos globais, o Papa voltou-se para a própria estrutura de participação e governo dentro da Igreja Católica, lançando um processo sinodal universal sem precedentes, cujo tema foi “a sinodalidade em si mesma”. O conceito de sinodalidade refere-se, em essência, à natureza comunitária e à dinâmica de participação de todo o Povo de Deus na vida e missão da Igreja. A Comissão Teológica Internacional da Santa Sé caracterizou a sinodalidade como “modus vivendi et operandi da Igreja povo de Deus”, que manifesta concretamente a condição de comunhão, o “caminhar juntos” reunindo-se em assembleia e contando com a participação ativa de todos os seus membros na missão evangelizadora. Implica uma Igreja menos hierárquica, onde leigos, clero e hierarquia caminham lado a lado. O próprio Papa Francisco sublinhou que a sinodalidade é dimensão “constitutiva” da Igreja – não um slogan ou moda passageira, mas parte integrante de sua essência, desde o Concílio Vaticano II. Esta ênfase indica que o Papa encarava a sinodalidade como um caminho de renovação e fortalecimento institucional, destinado a envolver a comunidade global de 1,3 mil milhões de católicos num discernimento comum.
O Sínodo sobre a Sinodalidade, convocado por Francisco, envolveu as dioceses do mundo inteiro em consultas e diálogo, culminando em assembleias sinodais em Roma. Nesse contexto, ganha relevo especial a relação deste sínodo com a situação eclesial na Alemanha. Nos últimos anos, a Igreja alemã empreendera um “Caminho Sinodal” próprio (Der Synodale Weg), que se tornou fonte de tensões com Roma e de especulações sobre um possível cisma. Compreender a herança geopolítica de Francisco requer analisar esta questão alemã, e como o Papa lidou com ela, especialmente através da convocação do sínodo global.
A Igreja na Alemanha vivera, a partir de 2018, um abalo sísmico decorrente da revelação de milhares de casos de abusos sexuais cometidos por clérigos nas décadas anteriores. Uma investigação da Conferência Episcopal Alemã expusera falhas graves na gestão desses abusos, mergulhando a Igreja numa crise de credibilidade. Em resposta, os bispos alemães, em conjunto com uma forte representação leiga do país, iniciaram em 2019 o “Caminho Sinodal Alemão” (CSA): um processo plurianual de debates e deliberações na tentativa de promover reformas e prevenir novos abusos. A própria origem desse sínodo nacional evidenciara o seu caráter de “reação a um momento de crise”: na apresentação dos documentos orientadores reconhecera-se que a “crise dos abusos” teve um impacto devastador na Igreja alemã, funcionando como um sinal dos tempos que impelia à renovação. O “Texto de Orientação” do CSA, adotado em fevereiro de 2022, estabeleceu as bases teológicas da iniciativa – um encontro plurianual de bispos e leigos para discutir quatro temas: poder, sacerdócio, mulheres na Igreja e sexualidade.
Durante cerca de três anos, bispos e leigos alemães discutiram propostas reformistas em quatro grandes áreas (poder e estrutura de governo na Igreja, moral sexual, forma de vida e disciplina do sacerdócio, e a participação feminina nos ministérios). Dentre as resoluções aprovadas constaram, por exemplo, pedidos para que Roma considere a ordenação de mulheres ao diaconato, a revisão do ensinamento do Catecismo sobre homossexualidade, a flexibilização do celibato sacerdotal e a criação de órgãos sinodais deliberativos permanentes no âmbito local.
Tais deliberações, embora sem efeito canônico imediato, foram vistas pela Santa Sé como risco de desvio doutrinário e de rutura da disciplina eclesial, especialmente a ideia de um Conselho Sinodal permanente na Alemanha que reuniria bispos e leigos com poder de decisão colegial – órgão que poderia enfraquecer a autoridade episcopal individual e a primazia romana. Em várias ocasiões, o Papa Francisco e altos cardeais expressaram preocupações. Já em 2019, Francisco escrevera uma longa Carta ao Povo de Deus na Alemanha, exortando-os a manter a comunhão com a Igreja universal e a não “transcender em desvios” ao buscar reformas. Posteriormente, em janeiro de 2023, o Papa aprovou uma missiva da Secretaria de Estado que proibia explicitamente a criação do aludido “Conselho Sinodal” alemão, por considerá-lo inconciliável com a estrutura hierárquico-sacramental da Igreja. Em novembro de 2023, o próprio Francisco reiterou partilhar a “preocupação com a Igreja da Alemanha”, reconhecendo que “grandes porções” dessa Igreja local ameaçavam “afastar-se cada vez mais do caminho comum da Igreja universal”.
É nesse contexto delicado que se pode inserir a convocação do Sínodo sobre a Sinodalidade pelo Papa Francisco que, ao anunciar um processo sinodal global em 2021, poderia também ter em vista absorver a experiência sinodal alemã num contexto mais amplo, diluindo tensões locais e evitando uma cisão. De facto, a Santa Sé deixara claro, já em 2021, que esperava que “as propostas do caminho [sinodal] na Alemanha pudessem ser incorporadas no caminho sinodal da Igreja universal.” Ou seja, Roma indicou explicitamente que as inquietações e sugestões vindas da Alemanha deveriam alimentar o discernimento de toda a Igreja, e não desembocar num concílio nacional autónomo. Essa integração serviria dois propósitos: enriquecer o diálogo sinodal mundial com as perspetivas alemãs e, simultaneamente, desestimular qualquer tendência de isolamento ou rutura por parte da Igreja na Alemanha. Francisco parece ter adotado uma estratégia de globalização e/ou universalização da reforma: em vez de um confronto frontal com os alemães, abriu espaço para que seus anseios fossem debatidos globalmente, sob a moderação de um Sínodo universal, que por sua natureza reforçaria a unidade católica. Essa abordagem conciliadora reflete um traço típico do Papa argentino: a preferência por “evitar choques frontais”, confiando que “o tempo é superior ao espaço”, como ele próprio mencionara em documentos programáticos, priorizando longos processos de diálogo a imposições imediatas.
Em termos geopolíticos e eclesiais, esta iniciativa de Francisco enfatizou o caráter católico (universal) da Igreja. Ao trazer a Igreja alemã “de volta ao coro” num processo participativo envolvendo todas as culturas, o Papa reforçou a mensagem de que não há igrejas nacionais autossuficientes acima da comunhão universal. Lembrou, na prática, que “a fé de cada Igreja particular está sempre localizada na fé de toda a Igreja”. De facto, diversas autoridades eclesiásticas sublinharam que o motivo fundamental para frear certas iniciativas unilaterais era a preocupação com a unidade da Igreja. Ao comentar o caso alemão, o cardeal Ouellet, então prefeito emérito do Dicastério para os Bispos, referiu: “o fundamento desta moratória [sobre o conselho sinodal alemão] é a preocupação pela unidade da Igreja”. Essa unidade, que é espiritual, mas também visível e institucional, tem implicações geopolíticas: a Igreja Católica atua como agente global precisamente porque mantém a sua coesão interna. Uma fragmentação – por exemplo, o surgimento de uma “Igreja nacional alemã” cismática – significaria a perda de parte da autoridade e influência unificada que o papado exerce no mundo. Vale lembrar as lições da história: o cisma protestante do século XVI, iniciado em solo alemão, não apenas dividiu a cristandade, mas alterou profundamente o equilíbrio político na Europa, gerando graves conflitos e realinhamentos de poder. Guardadas as devidas proporções, um cisma no século XXI, ainda que localizado, seria uma derrota geopolítica para a Igreja de Roma, minando sua reclamação de representar 1,3 mil milhões de católicos numa só voz em questões universais (moral, diplomacia humanitária, defesa da paz, etc.). Além disso, internamente, os fiéis sofreriam as consequências da divisão: líderes católicos alertam que divisões profundas no episcopado são “um desastre para os fiéis”, confundindo o povo de Deus e minando a sua confiança. Em suma, evitar o cisma não seria apenas questão de disciplina eclesial, mas também de preservação da relevância e força moral unificada da Igreja no cenário mundial.
Graças, em parte, à abordagem abrangente de Francisco, o Caminho Sinodal Alemão chegou ao fim em 2023 sem romper formalmente com Roma. As palavras de Dom Georg Bätzing, presidente da Conferência Episcopal Alemã – “Wir sind und bleiben katholisch” (“Somos e continuaremos a ser católicos”) – confirmam que, apesar das tensões, a intenção era buscar mudanças dentro da Igreja, não fora dela. A intervenção do Papa, ao abrir caminhos de diálogo e segurar as rédeas nos momentos críticos, foi crucial para que os anseios de renovação na Alemanha não descambassem em rutura.
3 ConclusãoAo avaliar o legado do Papa Francisco sob o prisma geopolítico, conclui-se que o seu principal feito foi preservar a unidade da Igreja Católica diante de ameaças de cisma, especialmente no conturbado caso alemão. Num mundo fragmentado e polarizado, Francisco investiu no fortalecimento das estruturas sinodais e na audição global das dioceses como antídotos contra divisões internas. A sua herança geopolítica manifesta-se na habilidade em evitar que diferenças regionais se transformassem em fissuras irreparáveis no corpo eclesial. Tal legado é tanto mais notável por ter sido construído sem coerção, mas por meio de apelos à comunhão, à oração e ao diálogo paciente. Em última análise, Francisco mostrou que a geopolítica do papado, no século XXI, passa menos pela conquista de novos territórios de influência e mais pela manutenção da integridade universal da Igreja, uma integridade que lhe permite continuar a ser um ator global. Evitar um cisma – com todas as suas potenciais consequências negativas para milhões de fiéis e para a posição da Igreja no concerto das nações – representa, pois, uma vitória geopolítica silenciosa, porém de alcance histórico. Essa vitória consiste em reafirmar que, sob o Sucessor de Pedro, a Igreja Católica permanece una e sinodal, caminhando decididamente rumo ao futuro sem se fragmentar. Em suma, o pontificado de Francisco deixa como marca indelével a garantia de que, apesar de crises internas sem precedentes, prevaleceu a unidade – e com ela, a continuidade da missão universal da Igreja no mundo contemporâneo.