Observador - 28 abr. 00:10
A respeito de denúncias anónimas em época eleitoral
A respeito de denúncias anónimas em época eleitoral
Indivíduos de baixa condição moral e com interesses em jogo nem sempre puderam fazer denúncias anónimas para destruir os seus alvos. O Regimento Inquisitorial de 1774 veio pôr fim a tal possibilidade.
Uma bula de Clemente VII lançou as bases da mais longa e obsessiva perseguição de consciências que a história humana conheceu. A denúncia anónima caluniosa e os testemunhos da mesma jaez, mesmo de condenados nos tribunais comuns e sem acesso directo aos alvos da denúncia, marcavam o fio condutor da investigação. Estes papéis sediosos integravam o processo como se fossem coisas sérias e constituíam mesmo a “notícia de crime”.
Também os “indícios suficientes��� previstos nos Regimentos inquisitoriais eram viciados pela vontade dos inquisidores. Uma vez posto o foco sobre um infeliz, anos de agonia lhe estavam prometidos, com provas toscas no sentido da sua perseguição, nunca da sua defesa, e ainda que relativas a factos genéricos, a puras generalidades, saídas da pena e da boca de quantos tinham ódio e vontade de magoar e desqualificar os destinatários da sua fúria incontida.
Não era averiguada a idoneidade dos denunciantes, nem das testemunhas por eles indicadas, nem a sua baixa condição moral, nem o seu real acesso aos factos, nem a sua sede de vingança ou qualquer outro rancor presente no seu coração. Pelo contrário, era atiçada a coragem da asneira aos mais doentios biltres, que ganhavam de súbito um novo estatuto social, passando amiúde de condenados a castigadores.
A plebe mais rasca era usada contra pessoas de valor superior. Qualquer um, por mais inocente e honrado que fosse, corria o risco de ser alvo da Inquisição, incluindo fidalgos, nobres e religiosos, fossem cristãos-novos ou velhos. Todos tiveram a sua porção. Aos cidadãos mais indignos, dava-se-lhes a possibilidade de serem iguais a si próprios e, imputados os réus, a linguagem daqueles tornava-se ainda mais desabrida, pelo encantamento sinistro que a situação lhes proporcionava. Pessoas iradas contra os réus juravam ter visto e ouvido as maiores loucuras, mesmo que os não conhecessem pessoalmente ou com eles não houvessem privado em anos recentes. Outro tipo de denunciantes existia também. Muitos processos relativos a heresias judaizantes nasceram de denúncias de católicos bem reputados na sociedade ou mesmo de cristãos-novos radicalizados que por qualquer razão pretendiam vingar-se dos maiores entre a sua grei.
Nos casos em que a prova era absolutamente pífia e escassa, o processo era mantido em banho-maria pelo tempo necessário, até que aparecessem novos factos e testemunhas animadas com a desgraça que recaíra sobre o réu. Foi sempre táctica inquisitorial compensar o defeito com um grande número de documentos e pessoas contra aquele que se pretendia punir, mesmo que o não conhecessem de todo.
Por meses e anos escondia-se dos denunciados o nome dos denunciantes, das testemunhas e a matéria investigada, obrigando as vítimas a adivinharem as imputações e a dizerem tudo o que sabiam para tentarem evitar uma acusação formal que de outro modo, aliás de qualquer modo, seria certa. Os próprios advogados não tinham acesso aos autos completos, e sim à versão vaga.
Para o réu, nunca era possível uma justificação plena, a menos que os inquisidores se revoltassem contra os denunciantes e as testemunhas de que se serviam. Raramente acontecia. Eram quase sagrados. Quando o réu tinha a sorte de os conhecer, anos depois, e se rebelava contra eles, era punido tão duramente como se tivesse ofendido os oficiais e ministros do Santo Ofício.
Começava o processo inquisitorial. Nada havia de mais lento. Muitos réus morreram de velhice ou doença sem verem a sua causa decidida. Chamados à mesa, eram perguntados pela sua genealogia, a mais longínqua possível, como se dela tivessem culpa. Mencionavam que não tinham pecado. Mais ninguém os queria ouvir. Assinavam o termo e voltavam para o cárcere, acompanhados por guardas que não deixavam de os pressionar para confessarem culpas que não tinham e para delatarem terceiros, única forma de se livrarem do processo. Atemorizados por esta chantagem, muitos pediam nova audição perante a mesa. Porém, quando a mesma não se destinava a confessar, eram vergastados violentamente por tal atrevimento.
Na fase processual seguinte, já com a presença de um letrado com vestes indignas de advogado, eram lidos os depoimentos dos denunciantes e testemunhas. Os “crimes” eram sempre relativos a mesquinhezes e as circunstâncias de tempo em que pretensamente teriam ocorrido difíceis de precisar. Alegadamente havia muitos anos que o réu prevaricara de forma determinada. Dava-se-lhe a palavra. Tudo dependia deste momento, uma vez que, postas as contraditas, estavam lançados os dados. Se logo ali não confessasse, assinava o termo e voltava para a masmorra, onde muitos se suicidavam dando cabeçadas nas paredes.
Daí a outro tempo, por vezes anos, chamavam o réu à mesa para nomear testemunhas, contraditas e coartadas. Esta fase de nada valia. Invariavelmente as testemunhas que indicava eram consideradas “defeituosas e reprovadas em Direito”, em duas palavras, indignas de crédito e amiúde co-autoras da mesma infracção que lhe estava imputada, caso em que seriam processadas também.
Seguia-se a sala do tormento. Poupamos o leitor a esta descrição, tal como às condições em que o réu vivia no ergástulo. Em regra, confessava. Queria ir embora. Em troca da liberdade tão amada, fazia o que fosse preciso. Mas não saía dali sem vergonha, em corpo no auto e com uma vela na mão, sendo certo que, com tal confissão, os seus familiares ficavam para sempre ligados ao crime de judaísmo.
Para a posteridade ficou um trabalho inquisitorial assente em dezenas de milhares de processos escritos com uma precisão e um detalhe quase clínicos. Este foi o Santo Ofício por terras lusas, um tribunal penitencial de quantificação da culpa por questões de fé e de acicatamento do que de pior existe no coração humano. O contexto social era favorável. O crime da fé equivalia ao crime da corrupção na modernidade. À queima de cristãos-novos seguiam-se danças e jogos de canas para festejar o acontecimento. Multidões alegres e excitadas com o “escrutínio” da moral pública apoiavam o trabalho dos inquisidores e nunca os deixavam de nutrir com novas denúncias, invariavelmente integradas no processo.
Na cidade do Porto, como noutras, os homens de letras ou de bens, os bem-sucedidos em geral, foram sempre os alvos predilectos dos denunciantes e dos poderes estabelecidos que deles faziam uso apaixonado. Um exemplo disto sucedeu aquando de uma visitação inquisitorial em 1618, quando mais de uma centena de pessoas foi alvo de denúncias dos seus maiores inimigos e do caso resultou igual número de prisões, emigração em massa dos que escaparam aos presídios e, conforme consta de documentos oficiais da Câmara Municipal, a total destruição da economia de uma cidade onde outrora os judeus pagavam 38% dos impostos e ainda davam cartas no comércio internacional.
Existiram cinco Regimentos para pautar o trabalho da Inquisição: 1552, 1570, 1613, 1640 e 1774, o último dos quais tentou humanizar um pouco os anteriores, pois já então se sabia que dezenas de cristãos-velhos ricos e de rigor católico impecável haviam sido falsamente denunciados e punidos por serem judaizantes. O diploma de 1774 acabou com as denúncias anónimas para início de investigação e exigiu que se tomasse “a mais exacta e rigorosa informação sobre a vida, costumes, crédito, probidade e reputação dos denunciantes e testemunhas”. “Se as denúncias foram dadas por inimigos, que conjuraram com testemunhas contra os denunciados, para o fim de os oprimirem e vexarem, [o processo] não procederá pelas ditas denúncias, e serão logo presos os sobreditos denunciantes e testemunhas por eles referidos, para se proceder contra todos como falsários”.
Não se limitando a referir vagamente a expressão “indícios de crime”, antes a conectando com qualificativos como a “qualidade e veemência” dos mesmos, o Regimento de 1774 rezava que “Toda a pessoa que testemunhar falso em Mesa do Santo Ofício será açoitada publicamente e degradada irremediavelmente para as Galés por tempo de dez anos”.
E de facto, o país viria a assistir a algo até então inédito. Testemunhas que haviam jurado falso foram punidas e viram os seus depoimentos queimados solenemente. Estávamos no século XVII e já existiam certos cuidados que hoje parecem esquecidos.