Observador - 28 abr. 00:06
Awake esquerda não woke
Awake esquerda não woke
A esquerda afastou as energias vivas dos espaços de irreverência ao impor a rigidez de uma doutrina marcada pelo politicamente correto.
A ideologia está em tudo, não é a medida de tudo. Expressões ideológicas estimulam o pensamento crítico, mas não raras vezes, afunilam expectativas sociais que assumem a forma de obrigações de facto. Gramsci afirmava que a academia, a arte e a linguagem são veículos privilegiados para a reprodução da ideologia. Nem a ciência escapa a esse risco gramsciano. A ciência não é ideológica, nem democrática. A ciência é alheia a paixões e afere-se no campo da objetividade e do método. É precisamente nesse ponto que a ideologia e a religião convergem, uma vez que ambas recusam aceitar o materialismo como plenitude da realidade.
No domínio da identidade, a ideologia tem contribuído para redefinições simbólicas. O conceito de mulher, historicamente ancorado na anatomia, na função reprodutiva e na estrutura cromossómica, foi reformulado com base em conceitos intersubjetivos. A ciência, que servia como referência para a definição de homem e de mulher, passou a ser um entrave ao dever-ser. Recentemente, o Supremo Tribunal do Reino Unido decidiu, por unanimidade, que apenas é mulher quem nasce com esse sexo biológico.
Compreendamos que nem todas as políticas inclusivas são wokistas. Este manifesta-se na implementação de políticas que equiparam a identidade à condição biológica. Um exemplo é a participação de pessoas trans em competições desportivas femininas. Quando um homem biológico, após a transição de sexo, é autorizado a competir com mulheres, as prejudicadas são todas as atletas que lutaram por aquilo que lhes foi negado. As vítimas são as mulheres que veem a integridade do desporto comprometida.
A esquerda presta-se a uma deferência pelas minorias, coisa bem diferente é cair na tentação de as entronizar por sua condição, sob pena de alienar a maioria. A empatia não é obrigação, é uma virtude. Impor uma virtude moral é anulá-la enquanto tal. Ser empático é a arte de reconhecer o sofrimento de uns sem desvalorizar o sofrimento de outros. A politização da empatia é a relativização do sofrimento, uma vez que se cria uma escala de vitimização baseada em gradientes identitários.
Outra das vítimas de exclusão são as pessoas racializadas. É inegável que, nos últimos anos, houve um progresso significativo na mentalidade da população portuguesa. No livro Afropeu: Percursos pela Europa Negra, Johny Pitts oferece uma reflexão sobre a experiência da negritude na Europa, uma vivência marcada pela marginalização e criatividade, onde as raízes africanas e europeias coexistem, colidem e, por vezes, reconciliam-se. Em contraste com a abordagem de diálogo, a agenda woke quer surfar a onda do divisionismo na ocidental praia lusitana. É uma lógica de expiação, que exige ao homem branco a assunção de um pecado herdado e a vergonha pela sua história.
No âmbito da relação entre o Estado e as pessoas racializados, a atuação policial tem sido alvo de debate. A polícia de proximidade assume um papel essencial na construção de laços de confiança dentro dos bairros, contribuindo para a reparação de feridas, através de uma presença não coerciva. Importa lembrar que foi sob um governo de esquerda que se aprovou a Lei n.º 38/2009, a qual permite a realização de buscas e revistas em espaços públicos, sempre com a exigência do uso da força dentro do estritamente necessário, o que pode incluir encostar pessoas à parede. Nesse sentido, é um erro estratégico importar narrativas de pacotilha, provindas de realidades alheias, nomeadamente dos EUA.
Também o policiamento e controlo de fronteiras é interpretado de forma maniqueísta, sendo associado a posições da extrema-direita. A ligação entre a imigração e a insegurança é um terreno fértil para desinformação e falta de informação, mas há vários desafios neste tema. Um partido que recentrou o seu discurso foi o Socialdemokratiet, na Dinamarca, que na liderança da primeira-ministra Mette Frederiksen adotou uma abordagem mais pragmática no que diz respeito à imigração e à globalização.
A esquerda não é antitética ao protecionismo, porque esta globalização é insustentável. Na sua marcha triunfal, ela esqueceu-se de olhar para o chão e tropeçou nas vidas que ficaram para trás. A procura incessante pela eficiência das grandes empresas tem comprometido uma visão holística da economia, que favorece a deslocalização de indústrias para mercados com mão de obra barata e onde os sistemas normativos são vestígios de uma era ancestral. Não deveria causar espanto a aplicação de tarifas comerciais a produtos fora da UE, se, de facto, elas já existem através da Política Comercial Comum.
Na economia portuguesa, os imigrantes desempenham funções que os portugueses não estão dispostos a assumir, mas é igualmente verdade que muitos competem diretamente com os trabalhadores nacionais nos setores do comércio e dos serviços, o que nivela os salários por baixo. Embora o aumento do número de imigrantes contribua para o equilíbrio das contas da Segurança Social, isso não implica necessariamente um crescimento económico, até porque atividades como cabeleireiro, lojista, motorista ou cozinheiro são profissões com baixo valor acrescentado, áreas que não estão vedadas ao interesse dos portugueses.
A habitação é uma necessidade urgente. Muitos imigrantes estão dispostos a viver em condições de indignidade e sobrelotação, e essa relativização acaba por viabilizar arrendamentos que, de outro modo, seriam excessivamente onerosos. Impulsionada pela procura, ainda que de forma residual, esta realidade pode incentivar os senhorios a inflacionarem os preços. Além disso, o argumento de que os imigrantes poderão contribuir para o setor da construção civil é um argumento raso, na medida em que não é evidente que certas comunidades venham a integrar esse setor. Há comunidades que se orientam preferencialmente ou contextualmente para outras áreas de atividade.
A imigração tem um impacto na coesão social, um tema tantas vezes negligenciado no debate público. Esta refere-se à capacidade de uma sociedade se compreender a si mesma e de construir uma comunidade partilhada e generosa. Num mundo fragmentado pelas redes sociais e pela polarização, resta-nos a cultura como axioma. A cultura manifesta-se na língua, no ordenamento jurídico, nos hábitos e na história coletiva de um povo. É viva e está em constante evolução. O processo de aculturação é por natureza bilateral, pois cabe aos imigrantes o esforço de se adaptarem à realidade do país que os acolhe, e à sociedade portuguesa criar espaço para a inclusão, que não pode ser imposta por decreto, mas construída na convivência do dia a dia e das relações humanas.
Recentemente, o Secretário-geral do PS afirmou que os imigrantes devem adaptar-se à cultura portuguesa, particularmente no que diz respeito ao tratamento das mulheres. Já o Bloco de Esquerda reconhece a necessidade de resgatar as figuras fundadoras do partido, cuja retórica se distingue dos deputados mais jovens. Honra seja feita à coerência do PCP, que nunca foi de modas, e esta é a face de uma moeda cuja outra face é a ortodoxia marxista-leninista, que afasta o homem médio.
Depois do 25 de Abril, Mário Soares demonstrou uma diferenciada habilidade para acolher diversos setores no seu partido, incluindo movimentos católicos que defendiam uma visão universalista do Estado Social, distinta do assistencialismo dos democratas-cristãos. Esse legado de inclusão das classes populares e mais tradicionais foi-se esbatendo ao longo do tempo. A tasca, o café e o táxi, outrora espaços de irreverência de ideias e de resistência, acabaram entregues à direita. A esquerda afastou essas energias vivas ao impor a rigidez de uma doutrina marcada pelo politicamente correto.
Nas próximas eleições, a esquerda será testada a vários níveis, e mesmo a indecisão é uma decisão. Existe o dilema de tentar convencer os eleitores a olharem positivamente para o wokismo ou de reconhecer que este está em declínio e é necessário mudar o discurso. Mais do que ajustar a narrativa, é essencial que ela seja autêntica, caso contrário, o eleitorado perceberá que as palavras não passam de uma encenação. Ousem acordar.