Observador - 27 abr. 18:38
Grita Liberdade
Grita Liberdade
Mais liberdade não significa menos regras sociais nem menos formalidade. Liberdade é verdade, delicadeza, coragem, afirmação e interpelação. Liberdade é uma experiência de comunhão entre duas pessoas.
A liberdade é uma festa. Sempre! Uma experiência de comunhão entre o que sentimos e o que pensamos. Uma experiência de encontro com outras pessoas, diferentes de nós, que nos sentem e nos imaginam. Que perguntam e escutam e falam. E, pensando em conjunto connosco, nos levam a “voar�� mais longe. Não há liberdade sem contraditório. Não há liberdade sem escolhas. Não há como ser livre sozinho. Não há liberdade sem que, ao pé de nós, os outros não experimentem, também, a sua liberdade.
É por isso que me incomoda a ideia que defende que a nossa liberdade começa onde termina a do outro. Porque uma ideia como essa pressupõe que o outro será sempre um obstáculo ou um constrangimento à nossa liberdade. O que, levado ao limite, nos permitiria supor que seríamos tanto mais felizes quanto mais sozinhos acabássemos por estar. O que talvez não seja lisongeante para a inteligência. Nem para a liberdade. Porque isso faria supor que seríamos tanto mais livres quanto mais pudéssemos fazer tudo(!) aquilo que quiséssemos. Sem restrições e sem se pensar, sequer, sobre isso. Como se a liberdade fosse agir mais do que pensar.
E, no entanto, considerando a educação, a fórmula “menos regras, mais liberdade” é um equívoco enorme que se tem vindo a alimentar. Como se as regras fossem uma opressão. O que pressupõe que as regras — que são, simplesmente, o senso comum do bom senso — seriam um constrangimento à liberdade e não tanto o seu garante. Indo-se por aqui, talvez se perceba melhor porque é os jovens mais escolarizados que a Humanidade já produziu, que têm os adultos mais perscrutantes em relação ao sentido da autoridade que podem ter sobre eles, se têm vindo a desencontrar da liberdade. E da humanidade. A ponto de mais escolaridade não representar, por isso mesmo, mais liberdade. Se a autoridade dos pais for, simultaneamente, sabedoria, bom senso, sentido de justiça e bondade não se entende de que forma autoridade e liberdade não podem conviver uma com a outra.
Liberdade significa autonomia. Se bem que expor as crianças precocemente às suas vontades, sem que os pais contribuam para elas e as ajudem a formatar as suas escolhas, não lhes traga mais liberdade. Antes as expõe ao desamparo. Aos olhos das crianças, ser livre é fazer tudo o que se quiser. Aos olhos dos bons pais, será fazer-se mais… que tudo aquilo que se quer. Ou seja, a forma como os pais evitam trazer as regras para o comportamento dos seus filhos não tem tanto a ver com a maior liberdade que queiram trazer ao seu crescimento mas com uma manifestação um bocadinho vaidosa de lhes estarem a dar a liberdade que as outras crianças não terão. Por mais que eles, ao chegarem à escola, pareçam ora agitados ora impositivos. A “liberdade sem limites” das crianças contribui para que muitas delas se tornem autoritárias. E aí, sim, a liberdade das crianças começa onde termina a dos pais. Mas serão elas, desse modo, mais livres?
A forma como se opõe a “livre demanda” das crianças (como, agora, se diz) à boa educação é só uma tolice. As crianças que acham que podem tudo, sem limites e sem barreiras, não são crianças com uma auto-estima exemplar. Mas crianças sem humildade e sem tolerância à frustração. Mal-educadas para a liberdade, portanto. Como o são as crianças, supostamente bem-educadas que, afinal, são só submissas, assustadas e que se anulam diante dos seus pontos de vista. Dominar crianças pelo medo não é, também, educá-las para a liberdade. Afinal, a boa educação não supõe nem anulação de pontos de vista nem submissão. Mas, antes, uma voz que não recua e que se casa com a liberdade cultivada como uma força tranquila. A liberdade é uma força tranquila!
Por outro lado, se olharmos para a relação entre escola e liberdade, é verdade que mais conhecimento significa maior liberdade. Por mais que a escola talvez eduque, por vezes, mal para a liberdade. Quando junta os alunos por aquilo que eles têm de mais parecido, sejam os bons resultados escolares como a sua proveniência social, como se quanto maiores fossem as suas diferenças menor se tornasse a sua liberdade, a escola educa mal para a liberdade. E fá-lo, ainda, quando incentiva a reprodução ou a repetição mecânica de conhecimentos em oposição ao encantamento diante da surpresa, da descoberta da utilidade daquilo que se aprende ou, por exemplo, da criatividade que se coloca sobre o que se descobriu. Se for assim, a escola enviesa a liberdade. E isso é preocupante!
Ao mesmo tempo que se escutam os lugares-comuns a propósito da ideia de liberdade, tem surgido uma “onda” que fala do amor como uma co-dependência. Por outras palavras, como um constrangimento à liberdade. Ora, contar com o outro para o nosso crescimento e para a nossa liberdade ou estarmos presos a ele são o contrário uma coisa da outra. O amor aprofunda a descoberta da liberdade. A dependência atrofia-a.
Vendo melhor, a minha liberdade começa onde começa a do outro! Do ponto de vista da psicologia, entende-se a liberdade como sinónimo de transparência, de autenticidade e de espontaneidade. Isto é, como um conjunto de manifestações que ganham forma na relação com o outro e com as quais a nossa liberdade e a sua encontram argumentos para se descobrirem. A liberdade é a capacidade de sermos verdadeiros. Fazendo com que seja expectável que exijamos (ou que esperemos) que ele corresponda do mesmo modo àquilo que lhe damos. Por outras palavras, liberdade será sinónimo de verdade. E, por isso, não se entende que sejamos ou mais ou menos livres. Mas, unicamente, livres. Ou não. (Não sendo verdadeiros e livres seremos falsos. E presos, submissos, coagidos ou dependentes.) Mais liberdade não significa menos regras sociais nem menos formalidade. Liberdade será verdade, delicadeza, coragem, afirmação e interpelação. Mas verdade não é crueldade; delicadeza não será obediência; coragem não é intimidação; afirmação não é insolência e interpelação não é desafio. A liberdade é uma experiência de comunhão entre duas pessoas. Uma reciprocidade de empatias. E é por isso que a comunhão entre pessoas – trazida pela música, pela festa, pelo pensamento esclarecido ou por gestos de bondade, por exemplo – é aquilo que mais nos traz à liberdade e mais nos aproxima das experiências de milagre. E, já agora, da nossa transformação como pessoas.
Em resumo, talvez não sejamos tão educados assim para ser livres. Somos, antes, constrangidos a prescindir da nossa liberdade. Na família. No trabalho. Nas redes sociais. No mundo. Ao contrário de tudo o que parece, seremos tão autónomos quanto a ideia de autonomia nos pode sugerir? Como podem pessoas cercadas por algoritmos ser, ao mesmo tempo, autónomas e mais livres? Num mundo de pessoas que se sentem tanto mais seguras quanto mais têm a ideia de controlar todos os aspectos da sua vida, e onde uma vertigem securitária legitima que a sua privacidade seja controlada, onde começa, enfim, a liberdade?
A liberdade é um grito! Não sobre o passado. Não sobre a memória. Ou sobre tudo aquilo que nos afasta da saúde mental, por mais que a doença psíquica talvez seja a consequência mais óbvia de todos os atropelos dirigidos contra a nossa liberdade. A liberdade é uma festa. Sempre! Não tanto por tudo aquilo com que ela nos revolve e faz crescer. Mas porque são tantos os constrangimentos, os atropelos e os equívocos em relação à liberdade que vislumbrá-la já é, sem dúvida, uma forma de se gritar liberdade.