Observador - 29 abr. 00:18
Quero uma casa deste tamanho
Quero uma casa deste tamanho
Não há nenhum problema com a casa de Ventura. Ser rico, remediado ou pobre não qualifica ninguém como bom ou mau político. Mentir sobre o que se é ou ou sobre o que se tem, é muito mais revelador.
André Ventura não cometeu um “lapso” sobre a casa onde vive, como disse, com algum embaraço e um sorriso comprometido, a Júlia Pinheiro. Mentiu. E mentiu três vezes durante o debate com Mariana Mortágua. Afinal, a “pequena” casa de 30 metros quadrados onde dizia viver é, na verdade, um T1 de 70 metros quadrados, com segurança 24 horas, piscina, jardim, parque infantil e garagem numa das zonas mais caras da cidade de Lisboa. Casa que por acaso pertence à mulher, Dina, e que, em 2009, custou 201 mil euros — 16 anos depois valerá, no mínimo, o dobro.
O logro durou menos 24 horas — era tão inverosímil que não resistiu ao mais básico apuramento dos factos. Rindo-se nervosamente, como alguém apanhado numa mentirinha inconsequente, André Ventura tentou resumir a questão a um erro inocente, sem importância, uma confusão de números. “Tem 70 [metros quadrados] na verdade. Eu é que me enganei ontem [no debate].” Basta ver esse frente a frente para perceber que Ventura não se enganou ou cometeu apenas um pequeno “lapso”; mentiu deliberadamente para tentar marcar o seu ponto.
Há um ano, Mariana Mortágua foi particularmente castigada por causa da história da avó — foi, aliás, André Ventura quem mais explorou o caso, chegando a dizer “olhos nos olhos”, como gosta de repetir, que a bloquista tinha contado uma “grande treta” e que fazia parte da esquerda “queque e fina” que vive no “Príncipe Real”. Um ano depois, à boleia das casas de Luís Montenegro e de Pedro Nuno Santos, também foi Ventura quem andou a dizer ser estranho ver “políticos a comprar casas de qualquer maneira como se o dinheiro jorrasse das fontes”.
André Ventura, de facto, não anda a comprar casas como se o “dinheiro jorrasse das fontes” — a casa pertence objetivamente à mulher e foi comprada ainda antes de casarem. Também é verdade que não se enquadra na “malta que vive no Príncipe Real” — vive no Parque das Nações, onde o metro quadrado custava, em março deste ano, 5.898 euros. O que é um bocadinho mais difícil de sustentar é que André Ventura seja um pobre coitado que vive exatamente numa despensa, num vão de escada ou numa caixa de fósforos.
Portanto, Ventura sentiu necessidade de dizer ser algo que efetivamente não é. Tentou associar-se aos muitos que não têm condições para viver condignamente — por oposição aos milionários do PS e do PSD e aos tipos do Bloco de Esquerda, que vivem em “palacetes” (André Ventura dixit) e são uns privilegiados. E não foi a primeira vez que o fez. Já no debate com Paulo Raimundo, perante a referência do comunista ao facto de viver em Alhos Vedros (Moita), na margem Sul do Rio Tejo, Ventura fez questão de dizer que também ele tinha vivido e crescido em Mem Martins, como forma de atestar as suas origens mais modestas.
A pergunta, portanto, é uma: porque é que o líder do Chega tem necessidade de mentir sobre a casa onde vive ou de recordar o seu percurso de vida como argumentos políticos? Talvez porque André Ventura sempre se tentou afirmar como o campeão dos descamisados, dos esquecidos pelo sistema e dos que foram ficando para trás. Tentou sempre ser o ponta de lança do “nós” contra os “eles”, o maior defensor dos descontentes — à semelhança do que outros movimentos com características idênticas foram fazendo noutras latitudes.
Basta olhar para a composição do eleitorado do Chega para perceber a preocupação especial de André Ventura. O partido consegue consecutivamente os seus melhores resultados nos concelhos onde o poder de compra é mais baixo, entre os menos qualificados e com menos rendimentos. Viver num condomínio de luxo, como André Ventura vive, não ajuda à narrativa. Pelo contrário: torna evidente o facto de ser um justo privilegiado. Como aqueles que jura querer combater.
Não há nenhum problema com a casa de Ventura. Nem mesmo se valesse um milhão, dois ou três. Podia ter 30, 40, 70 ou 100 metros quadrados. Ser rico, remediado ou pobre não qualifica ninguém como bom ou mau político. Ter recebido a ajuda do pai para comprar uma casa ou viver na casa da mulher também não. Em contrapartida, sentir a necessidade de mentir sobre o que se é ou sobre o que se tem para tentar obter ganhos políticos é um traço de personalidade muito mais revelador do que a origem, a classe social ou as circunstâncias individuais de cada um. É grave e não se apaga. Se é possível mentir sobre 40 metros quadrados, é possível mentir sobre mais coisas.