observador.ptObservador - 29 abr. 00:15

Sem luz ao fundo do túnel

Sem luz ao fundo do túnel

“Dizem que as catástrofes são frutos do acaso, e haverá quem diga que os passageiros do Cometa não eram culpados nem responsáveis pelo que aconteceu com eles” – Ayn Rand, em “A Revolta do Atlas”

Na distópica narrativa de “A Revolta do Atlas” (“Atlas Shrugged”, no original) de Ayn Rand, uma sociedade imaginada desmorona-se lentamente sob o peso da mediocridade institucionalizada e do ressentimento contra a excel��ncia individual. As infraestruturas vitais, outrora símbolos de progresso e estabilidade, caem gradualmente em decadência devido à negligência sistemática, corrupção burocrática e sabotagem ideológica. À medida que as luzes das cidades se apagam, as fábricas param, as redes de transportes colapsam e os hospitais ficam sem recursos essenciais: a sociedade entra numa espiral descendente, consumida pelo caos e dominada por notícias falsas, usadas como ferramenta para controlar a população, alimentando confusão e medo.

Portugal e Espanha vivenciaram um pouco da experiência distópica de Ayn Rand, inquietante nas suas semelhanças, ainda que – felizmente – não no seu apocalipse final. Durante horas, a Península Ibérica mergulhou numa inesperada escuridão, revelando dramaticamente a vulnerabilidade das nossas infraestruturas críticas. Durante horas, vivemos na incerteza das razões que determinaram a falha, mergulhados na vertigem das “fake news” (notícias falsas) nascidas da vertigem das redes sociais mas que a comunicação social convencional não resistiu a amplificar, mesmo sem confirmação – e, diga-se de passagem, plausibilidade: desde alegações de acidentes aéreos inexistentes, a fenómenos atmosféricos raros, tudo foi veiculado, incluindo afirmações da REN de que a reposição poderia durar uma semana. Uma das notícias mais grosseiramente falsas, mas que rapidamente “circulou” até se tornar viral, mencionava um alegado ataque cibernético coordenado, atribuído falsamente à Rússia, que teria afetado redes elétricas, instituições financeiras e aeroportos em mais de 15 países europeus. A suposta “notícia”, amplificada por uma falsa citação atribuída à presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, gerou pânico e alimentou teorias conspirativas, merecendo destaque em vários órgãos de comunicação social (os quais, por pudor, não vou aqui linkar).

Este episódio expôs, também, de forma contundente, uma realidade frequentemente desvalorizada por governos, empresas e cidadãos: a importância estratégica das infraestruturas críticas para a estabilidade económica e social. Redes elétricas, telecomunicações, sistemas bancários, transportes e distribuição de água formam a espinha dorsal de sociedades modernas. Contudo, só parecem merecer a atenção necessária quando falham catastroficamente.

Por esta vez, a falha terá resultado de um problema operacional. Mas, e se a origem deste “blackout” tivesse sido um ataque cibernético sofisticado, um atentado terrorista ou mesmo uma sabotagem física deliberada protagonizada por agentes de um Estado beligerante? Estaríamos realmente preparados para enfrentar e responder eficazmente a um cenário com estas implicações? Não apenas militarmente, mas sobretudo enquanto sociedade civil, estaremos aptos para lidar com crises repentinas e manter a coesão e operacionalidade básicas?

Nos próximos dias, em tempo de eleições, não faltarão loas do poder político a si próprio, a elogiar a fantástica reação e resposta à crise – algo que, nesta altura, não tenho condições para refutar ou avaliar. O que ontem vivemos exibiu, em qualquer caso, uma fragilidade objetiva das nossas infraestruturas físicas, na forma como foram pensadas, uma vulnerabilidade da nossa sociedade perante a desinformação em tempos de crise, e uma certa falta de resiliência latente da nossa sociedade civil, que a todos nos deve preocupar.

O apagão de hoje teve uma solução dolorosa, embora breve, mas não deve ser visto como um incidente passageiro. Que este episódio sirva de alerta e, ao contrário do desfecho de “A Revolta do Atlas”, não precisemos de um colapso total para finalmente reconhecermos o valor vital das nossas infraestruturas críticas e para reconstruirmos uma sociedade mais preparada, resiliente e esclarecida, capaz de valorizar os melhores, enfrentar com serenidade e reagir eficazmente às ameaças cada vez mais concretas que enfrentamos.

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