Observador - 29 abr. 00:06
"As Portas da Perceção" e "Filosofia Perene" de Aldous Huxley
"As Portas da Perceção" e "Filosofia Perene" de Aldous Huxley
As obras "As Portas da Perceção" e "Filosofia Perene" devem ler-se em conjunto: se a primeira pretende ajudar a subir os degraus da escada, a segunda proporciona alcançarmos o céu.
Aldous Huxley, como qualquer místico, não está preocupado com a designação. O que lhe interessa é o estado paroxísmico da vivência, a perceção já depurada de toda a concetualização e racionalização – a experiência mística em concreto. Esta apenas se pode dar num estado limite para lá da linguagem e da figuração, para lá do espaço e do tempo. Claro que a uma visão tão peculiar se chama de Eternidade. E, claro, que essa ótica é particular da divindade. Daí o autor advertir que são raros os que conseguem aceder a tal condição ultra, e no livro Filosofia Perene, debruça-se sobre as suas obras e conquistas. Somente os «amorosos, puros de coração e pobres de espírito» lhe conseguem aceder. Assim, o inglês multiplica os nomes desse status especialíssimo: para efeitos de simplicidade e entendimento denominaremos tal modo de «Visão Beatífica» da «Divindade».
Termos vagos e imprecisos, dirão; no entanto, em que outra forma e roupagem se poderá descrever semelhante estranheza; em que outra modalidade simbólica se poderiam conjurar estes estados de alteridade? Que não haja dúvida: aquele que acolhe semelhante experiência jamais a consegue transmitir, a não ser numa linguagem tosca e sem brilho, desapropriada, muito aquém do vivido. Como se estivesse condenado a gaguejar e a recorrer a onomatopeias, a habitar uma Babel humanamente intraduzível. Intratável. Nas sociedades civilizadas, em que a indústria, a tecnologia e o mercado proliferam e constituem o dia-a-dia do sujeito, o eu multiplica-se em horários apertados e afazeres avassaladores nada propícios à reflexão e à meditação. A busca a que cada um é interpelado pede outro ritmo e outro ambiente, implora um silêncio, sempre violado. Nas sociedades ditas primitivas, antigas ou coevas, ainda se vislumbram habitats propícios ao encontro com o sobrenatural. O contacto direto com a natureza e com o nosso espírito encontra condições mais benéficas para uma desmultiplicação da individualidade. Contudo, há etapas que não podem ser queimadas.
O primeiro patamar a atingir é o «Não-eu», estado já desprovido da nossa idiossincrasia castradora, em que o indivíduo se predispõe a conectar-se com o Universo e com o Universal. Nesta especial condição, cada ser humano, já não projetando o seu eu nas coisas do mundo, isto é, não objetivando as coisas como meio, mas como um fim em si mesmo (diria Kant), vê na singularidade a pureza devolvida a si, ao seu eu já despojado de qualquer alicerce artificial. Ou seja, vemos as coisas como são, acedendo simultaneamente a nós mesmos, mas assumindo a perspetiva da Divindade. Aqui, todo o objeto reflete o que nós somos enquanto Não-eu, e é a partir desse instante que se pode almejar um distintivo existencial que provoca a fuga até ao «infinito» e ao «absoluto». Ora, esses raros «iluminados», se conseguem aceder à visão pura, para o comum dos mortais são-lhe vedadas tais cercanias. Todavia, existem alternativas disponíveis que podem fazer pender o espírito para tais voos. Na obra As Portas da Perceção, Huxley relata uma experiência com mescalina, o princípio ativo do cacto peiote. Os nativos mexicanos há muito tempo que recorrem à sua magia para acederem a estados de alma mais propícios à espiritualidade (já reportado por Artaud sob o título O Rito do Peyotl entre os Tarahumaras). O autor, contudo, clarifica que as experiências alucinógenas não correspondem à experiência mística em si mesma, apenas contribuem para abanar a muralha do Eu, ou seja, para anular o ego de cada um de nós. A educação, a escolaridade, a linguagem e até a filosofia (exceção feita à philosophia perennis) contribuem para amarrar o espírito, originalmente livre, a um eu egoísta e solipsista. São precisamente as razões biológicas (Céline chamou-lhe “confissão biológica”) do utilitarismo e da sobrevivência pura e dura, que compõem o forte e as suas muralhas. A mescalina, não é senão uma «porta na muralha» (termo que vai buscar a H.G. Wells) que auxiliam a entorpecer essa limitação paralisante.
Na sua aportação à passagem evangélica de Marta e Maria, a droga atuaria no papel de Maria e o banal e monótono quotidiano assumiria o papel de Marta. Para o inglês não há incerteza: para a maioria dos seres humanos a realidade diária é um peso e uma dura cruz a suportar. Afazeres e preocupações, onde estamos sempre atrasados para algo. (“Marta, Marta, estás preocupada com tanta coisa e só uma é importante. E Maria já a encontrou e a ela nada lhe será negado”). Apesar de existirem exercícios espirituais que auxiliam a espiritualidade, podemos afirmar que todos sem exceção necessitam – ou pelo menos, podem beneficiar – de algum produto para fugir do estado de torpeza e sofrimento. Aliás, Huxley é perentório quando afirma que cabe à ciência proporcionar no futuro a farmacologia mais adequada para essa necessidade. Por enquanto (em 1953) a mescalina é o mais indicado dos propulsores conhecidos. Muito superior ao álcool, aos barbitúricos e ao tabaco (com a enorme vantagem de não ter efeitos secundários nem provocar ressaca e habituação), que à época eram os mais usados, é um catalisador muito mais propício ao ser humano para evadir-se da prisão do eu individual. O autor de Admirável Mundo Novo descreve com especial talento e beleza a sua experiência com o alcaloide: num dia primaveril, ofereceu-se como cobaia, diluindo quatro decigramas de mescalina em meio copo de água e sentou-se para esperar pelos resultados. Mesmo com um talento digno da genialidade, acredito que ficou muito longe de expressar na sua pureza e peculiaridade as ocorrências dessa dezena de horas, duração repleta de alucinações extraordinárias de cores radiantes e luminosas com vida própria, e de visões deturpadas, isto é, modificadas para melhor, caracterizadas por cambiantes e efeitos espetaculares dos objetos em seu redor, que aliás, ultrapassavam em fulgor e intensidade espiritual as melhores obras de arte. Porque não basta à mulher ser maçã e à maçã ser mulher (como Cézanne exigia); é indispensável que cada uma seja a outra e si mesma em simultâneo. É isso o Não-ser: perder-se no outro ao mesmo tempo que o outro se concentra, diluindo-se, em nós. A ulterior experiência mística – a acontecer – corresponderá – se temos de recorrer a palavras, ou seja, a símbolos – ao encontro, depois de muito peneirar a nossa alma, com a Divindade; esta, permanecendo infinita e sendo absoluta, unicidade, tem uma ligação umbilical com aquela – como disse, é uma questão de depuração, de filtragem. A comunhão é possível.
A ver se nos entendemos: a ligação sempre existiu com o Criador; está, devido à simbologia das letras e palavras e, conforme atrás dissemos, com a necessidade de sobrevivência corpórea a partir de muito cedo, desde a infância, embaciada e suja ao ponto da fuligem mais espessa. A Divindade sendo o «Estado de ser» – o Istigkeit de Eckhart -, o Uno, ou seja, a Unidade Primordial (“Eu sou aquele que É”), não se divide; no entanto, cada um de nós tem uma filiação divina com o nosso Criador – é precisamente essa relação que necessita ser atualizada. Perscrutando a nossa alma descobrimo-nos em intimidade milagrosa com Deus; contudo, só lá chegamos escondendo-nos e eliminando-nos. Quando o conseguimos totalmente, eis que Deus está aí apresentando-se ao nosso eu latente. “É preciso que eu diminua para ele crescer”, conforme João Batista.
Claro que tudo isto são palavras ocas em relação à experiência primordial. Contudo, para aqueles que não a viveram, é tudo o que lhes resta escutar. Todos os místicos anseiam (e alcançam) este estado – é a sua razão de ser. Todavia, para alcançarem cada vez maior número de fiéis e intérpretes, para espalhar a bendição, é imperativo recorrer-se à simbologia da linguagem, dos rituais e dos sacramentos. Malgrado, é conhecido que as igrejas, no geral, receiam os místicos; eles introduzem na equação algo que escapa ao controlo e verificação da Hierarquia. O rebanho bem apascentado não convive bem com ovelhas cor de malva. O perigo, do seu ponto de vista, vem tanto do lado do lobo em pele de cordeiro, como do cordeiro que dispensa a erva.
Mas, onde, afinal, se podem consultar essas experiências, ao mesmo tempo extraordinárias e temíveis? – pois quem as teve jamais será o mesmo, vem transformado e transfigurado. Huxley priorizou o cristianismo e as religiões do extremo-oriente. Fala de diversos escritos e de várias práticas religiosas e místicas, e de autores (aparentemente) muito diversos: cristianismo, budismo, hinduísmo, taoismo, islamismo; São Bernardo, Mestre Eckhart,, William Blake, São Tomás de Aquino, Shankara, Chuang Tzu, Kabir, Gautama, … Os místicos assumem diferentes formas e invólucros, e habitam diversas partes do globo. Pelo menos desde há 25 séculos que existem Mestres a percorrer o Caminho. A obra Filosofia Perene (1945) é-lhes dedicada.
Aldous Huxley, pensador e escritor visionário, um místico, marcou uma geração. O recurso às drogas psicotrópicas na altura em que escreveu a sua apologia, anos 50, numa altura em que não eram conhecidos os seus efeitos secundários e retardatários, era percecionado como um escape à torpeza dominante e uma via espiritual. Muitos se perderam e outros tantos ficaram reduzidos na sua potência enquanto seres humanos. Tudo isto é sabido. Todavia, não é lícito questionar a sua honestidade e coragem. Após duas guerras mundiais viu nessas substâncias e no misticismo (e mais tarde no pacifismo) alternativas viáveis e superiores para a Humanidade. Podemos não concordar com a sua visão e não seguir as suas propostas; a meu ver, contudo, não devíamos ignorar as suas obras e as suas ideias – constituem um espólio riquíssimo de pensamento original, de escrita límpida e de um fulgor raramente encontrados. As obras As Portas da Perceção e Filosofia Perene devem ler-se em conjunto: se a primeira pretende ajudar a subir os degraus da escada, a segunda proporciona alcançarmos o céu.