publico@publico.pt - 28 abr. 08:26
O Coração Ainda Bate. Um guia para a vida
O Coração Ainda Bate. Um guia para a vida
A empatia não é da esquerda nem da direita: é de quem a quiser praticar.
Ontem vi pela quarta vez o filme sobre o compositor e pianista Don Shirley - Green Book. O que me faz ver o filme, para além da beleza evidente que paira sobre o músico, é a história da amizade nada previsível que vai nascer entre dois homens. Talvez este nosso fascínio pela amizade passe por essa imprevisibilidade de duas pessoas, que, às vezes sendo de mundos tão diferentes, se aproximam e selam pactos para a vida. Não precisa de ser para a vida, mas às vezes, afortunadamente, acontece.
Don Shirley e Tony Lip, um virtuoso do piano e um italiano disponível para biscates (que muito mais tarde apareceu no elenco da série Os Sopranos), fazem muito mais do que uma digressão juntos. Fazem uma viagem interior, que os leva a descobrir lugares, dentro deles, que não conheciam. E isso une-os. Mas mais forte ainda é a capacidade de ambos se colocarem no lugar do outro.
Estamos em 1962 e Don Shirley é um músico negro americano respeitadíssimo, mas não o suficiente para que os brancos dos estados do sul o aceitem nas suas casas de banho. Tony Lip, habituado à gíria e ao lado mais ‘prático’ da máfia, era o homem que, antes desta viagem começar, chamaria sem hesitar “escarumba” a Don. Todos os seus próximos o fazem. Os desconhecidos também. O que acontece entre os dois (ambos viriam a morrer curiosamente no mesmo ano, 2013) é de facto extraordinário. Praticou-se a empatia, porque ambos conseguiram trocar de papéis: perceber o que era ser um negro numa era ainda racista ou ser um branco pouco culto olhado de lado pelos outros brancos.
Chama-se empatia o que ali aconteceu. Se calhar é por isso que gosto tanto do filme, baseado numa história real, sem que me apeteça escrutinar verdades ou mentiras ali contidas ou contadas. E regresso a Green Book para ter fé e esperança na humanidade. Porque talvez seja sempre possível pormo-nos no lugar do outro por mais longe que o lugar do outro esteja de nós. Por mais que não aceitemos que o preconceito, que facilmente ganha raízes fortes em nós, nos pode fazer dar a mão ao outro, mesmo que ele não goste da mesma cor que nós.
Depois da morte do Papa Francisco, a palavra empatia emergiu, límpida e sólida, para o debate público. E vi, com estupefacção, algumas vozes a empurrarem a empatia para um domínio político pouco desejado.
O excesso desta sociedade, em que também vivo, foi-nos retirando o apetite pela atenção sobre o outro. “Estou aqui no meu canto, com o meu telemóvel, não quero saber do que se passa lá fora”. É mais ou menos aqui que estamos. Aturdidos e atordoados pelo excesso, sem saber muito bem como é que se pergunta pelo outro, se o que interessa somos apenas nós.
Agora acho que tenho sorte por ter nascido na década de 1970. Viemos de um tempo em que vimos as coisas surgirem devagar: demos valor à televisão que chegou, ao telefone que tocou, ao que sonhámos ter e não veio a acontecer.
Nós, filhos de outras gerações, aprendemos cedo o que era a empatia muito antes de conhecermos a palavra que nos coloca no lugar do outro.
Talvez seja importante ver Green Book de novo e mais outra vez. Aqueles homens existiram. Vinham de sítios onde as defesas e o ódio inconsequente foram fomentados. Tiveram essa capacidade única, que faz de nós humanos, de querer saber um do outro.
Talvez precisemos de um novo guia para a vida.
O coração ainda bate.