publico@publico.pt - 28 abr. 23:38
Finalmente há luar
Finalmente há luar
Até que às 21h32 a luz chegou. Um aplauso irrompeu pelas janelas e pelas ruas. Os vultos tornaram-se pessoas. As casas lugares com gente. A falta de luar tornara-se menos importante
Na subida da Rua da Aliança Operária, na Ajuda, em Lisboa, dois eléctricos jaziam espectrais no crepúsculo do dia do apagão. Estavam ali há horas. Quando a electricidade falhou, esses símbolos da tecnologia do final do século XIX falharam também. Como que a provar que as fragilidades da era da luz e do aço permanecem sem mudanças na era da Inteligência Artificial. O seu abandono no meio da rua invocava os cenários apocalípticos dos filmes. A vida desaparecera, só restaram silhuetas de ferro, vidro e aço. Não fossem os escassos carros de passagem a iluminarem-nos, os eléctricos assustavam como fantasmas.
Lisboa passara um dia ansioso e quando a noite se começou a instalar, adaptou-se. Estava calor e à falta de luz, os lisboetas foram buscar os grelhadores. Ainda era dia e colunas difusas de fumo com cheiros intensos a frango, emergiam dos pátios interiores. Nas ruas, os aflitos corriam e os resistentes deixavam-se estar. Não é fácil imaginar onde. O comércio tradicional, os supermercados, os comércios e os restaurantes fecharam, só restavam as lojas de kebab dos emigrantes. Se não havia luz para cozinhar, sempre se vendiam cervejas tépidas.
As ruas escuras com as janelas escuras exigiam atenção. Nas soleiras ou nas esquinas, pessoas com ar de alma penada espreitavam. Não se sabe bem o quê, deixavam-se apenas estar. Nas janelas, vultos procuravam na rua a animação garantida nos dias normais pelos ecrãs de televisão. Este não era um dia normal. Lisboa estava sem luz. Infelizmente não havia luar. Os escassos carros e os pirilampos dos telemóveis dos transeuntes não bastavam para lhe dar cor. Restavam as silhuetas das ruas e das casas. Lisboa é bela de qualquer maneira.
Na Travessa da Boa Hora à Ajuda, as almas errantes da noite escura encontraram pousio. Num terceiro andar, um homem apoiado por um sistema de karaoke cantava canções românticas. “Sempre que pode, faz uma serenata”, explicava uma vizinha, feliz. Porque o homem cantava bem. No escuro, percebia-se que, lá em cima, agitava os braços enquanto contava as agruras amorosas da Maria morena. Cá em baixo, as pessoas escutavam e aplaudiam. Uns 40 minutos depois, a audiência tinha crescido. A vida de bairro é irresistível.
Na descida da Boa Hora para Belém, grupos de turistas divagavam. É normal que não queiram perder nada de Lisboa nas suas curtas visitas. Se não há luz, há ruas. Um casal tinha parado enquanto dividia uma lata de atum com uma colher de café. Nos Jerónimos, a vida estava suspensa, mas no Palácio de Belém havia luz – e um barulho imenso de geradores. Não dava para iluminar a fachada, nem as guaritas da guarda honra. Mas tudo se fez para garantir a leitura nocturna de Marcelo e um feixe de luz sobre a bandeira nacional.
Até que às 21h32 a luz chegou. Passaram-se poucos segundos nervosos até que um aplauso irrompeu pelas janelas e pelas ruas. Os vultos tornaram-se pessoas. As casas lugares com gente. A falta de luar tornara-se menos importante. E até os eléctricos, espectrais, feridos, presos aos carris, no meio da rua, ficaram com um ar menos fantasmagórico. Ali ficarão mais umas horas, a testemunhar um dia nervoso e estranho.