observador.ptObservador - 29 abr. 00:05

Luxo à superfície, sustentabilidade nas profundezas?

Luxo à superfície, sustentabilidade nas profundezas?

Se o ambiente e os cruzeiros nunca forem os melhores amigos, que ao menos aprendam a navegar juntos, sem rancores, nem fumo no horizonte.

Polémicos por natureza, glamorosos por definição e desconfortáveis de encaixar em discursos  simplistas, os cruzeiros continuam a navegar entre o fascínio e a crítica. Há quem os idolatre  como autênticos resorts flutuantes, sinónimo de liberdade, hedonismo e horizontes por explorar.  E há quem os acuse de serem aberrações ecológicas, arrastando toneladas de aço, diesel e  carbono por mares outrora tranquilos. No meio deste embate de perceções, está uma realidade  mais densa e complexa, e muito mais interessante.

A verdade é que a indústria dos cruzeiros está longe de ser estática. Em 2023, registou mais de  31,7 milhões de passageiros. Em 2024 estima-se que tenham viajado cerca de 35,7 milhões, e se  a tendência se mantiver, 2025 poderá ultrapassar os 38 milhões de viajantes. É um crescimento  consistente, silencioso, mas com impacto real, tanto na economia como no ambiente. E em  Portugal, esse impacto é tudo menos marginal.

Vejamos, em 2023, a atividade de cruzeiros representou 0,3% do PIB nacional e 2,16% do PIB do  turismo. Mais do que números, são quase 2 mil milhões de euros gerados, 317 milhões em  receitas fiscais e mais de 20 mil postos de trabalho criados direta e indiretamente. A cada navio  que atracou na capital, o país arrecadou, em média, 2,29 milhões de euros em riqueza, 59  empregos e 910 mil euros para os cofres do Estado. E na minha opinião, isto não pode ser  ignorado, isto não são ganhos marginais, mas é preciso estratégia e responsabilidade.

Mas, como em tudo, há um preço a pagar. E esse preço, dizem os críticos, é o impacto ambiental.  A imagem de um navio de cruzeiro a largar fumo enquanto flutua à beira-rio incomoda.  Incomoda os ambientalistas, os vizinhos, os especialistas em mobilidade urbana, e mesmo  alguns turistas. E com alguma razão. Um cruzeiro de médio porte pode emitir gases com efeito  de estufa — como dióxido de carbono, metano e óxidos de azoto — em volumes equivalentes a  12 mil automóveis. Não se trata apenas de fumo: trata-se de CO₂, CH₄, NOₓ, SO₂, e partículas  finas que afetam a saúde e o clima.

A pegada de carbono por passageiro pode facilmente triplicar durante uma viagem, sobretudo  se forem contabilizados os voos associados à deslocação até ao porto de embarque. É uma  bomba invisível, mas mensurável.

Contudo, reduzir o debate a um veredicto unidimensional é intelectualmente preguiçoso e  desonesto. A indústria não parou. Navios da MSC, Royal Caribbean, Carnival e Norwegian estão  a ser construídos ou convertidos para operar com Gás Natural Liquefeito (GNL) — que reduz até  30% das emissões de CO₂, elimina praticamente o enxofre, e diminui drasticamente as partículas  poluentes. É uma transição, não uma solução final, pois o metano — mesmo com fugas mínimas,  continua a ser um gás com potencial de aquecimento global muito superior ao CO₂.

Ao mesmo tempo, companhias como a Explora Journeys ou a Viking estão a apostar em navios  movidos a metanol verde, hidrogénio líquido e, mais experimentalmente, amónia. No entanto,  são tecnologias que ainda não estão maduras para uso comercial em larga escala, mas  representam uma aposta clara num futuro onde a propulsão será mais limpa, mais eficiente e menos dependente de fósseis. O desafio maior? A ausência de infraestrutura portuária  preparada para abastecer este novo paradigma energético.

É aqui que entra o paradoxo mais frustrante: a tecnologia está a chegar, mas os portos não estão  prontos. Apenas 2% dos portos mundiais dispõem de Onshore Power Supply (OPS), sistema que  permite desligar os motores e ligar o navio à rede elétrica em terra. Na União Europeia, só 31  portos em 12 Estados-Membros têm esta capacidade, num universo de mais de 1.200 portos  comerciais. Em contrapartida, 46% dos navios já estão preparados para esta ligação, e não a  utilizam por falta de condições locais. Ou seja, mais uma vez governos e estados perderam-se  em regulações e não em soluções.

Em Lisboa, a história começa a mudar. O Porto de Lisboa está a investir 31 milhões de euros na  eletrificação do terminal de cruzeiros. O objetivo é claro: reduzir em 77% as emissões poluentes  dos navios atracados até 2026.

Mais ainda, um estudo promovido pela Universidade Rovira i Virgili, em parceria com a CLIA,  analisou os poluentes atmosféricos na área metropolitana de Lisboa e concluiu que as emissões  dos navios de cruzeiro não afetam significativamente a qualidade do ar urbano. O impacto é real,  mas localizado e mitigável.

Aliás, a própria União Europeia já decidiu que não quer esperar, e a partir de 2030, todos os  grandes portos da rede TEN-T serão obrigados a fornecer alimentação elétrica aos navios, e estes  obrigados a ligarem-se à rede quando atracados. É uma mudança de escala. Uma que pode  transformar os portos em hubs verdes da nova economia azul.

Ainda assim, nem tudo depende de cabos de alta tensão ou painéis solares no convés. Há um  outro fator, talvez o mais importante: as escolhas de quem viaja. Porque quem embarca também  tem responsabilidade. Escolher companhias com compromissos ambientais sérios. Recusar o  plástico descartável. Evitar voos longos para apenas dois ou três dias de cruzeiro. Apostar na  compensação de carbono ou, melhor ainda, na minimização da emissão. Cada escolha pesa. E  pode fazer toda a diferença.

Porque se a viagem é inevitável, que seja rumo a um mundo onde o prazer flutua, mas o futuro  não se afunda. E se o ambiente e os cruzeiros nunca forem os melhores amigos, que ao menos  aprendam a navegar juntos, sem rancores, nem fumo no horizonte.

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