observador.ptObservador - 29 abr. 00:14

Geopolítica e jardineiros: a Europa e a ilusão do Fim da História

Geopolítica e jardineiros: a Europa e a ilusão do Fim da História

A ordem internacional liberal está claramente em colapso. Sem os Estados Unidos como âncora, a Europa tem de reaprender uma lição esquecida: Se queres a paz prepara-te para a guerra!
Relembrando Mackinder e Spykman

Em 1919, o geógrafo inglês Mackinder desenhou uma visão do mundo que ainda hoje orienta a análise e a tomada de decisões de estrategas e políticos.

Segundo ela, a Europa e a Ásia (Eurásia) constituem a “Ilha Mundo”, em torno de cuja zona central (Heartland) tendem a ocorrer os grandes eventos mundiais ligados à guerra e à paz. Este Hearland incluía o espaço ocupado pelos países bálticos, Bielorrússia e Rússia oriental. Em torno do Heartland existe um cinturão de regiões marginais, dispostas num amplo “arco”, que inclui a Europa Ocidental, Turquia, Índia e China, regiões acessíveis a partir do mar. A restante massa terrestre era apenas um crescente exterior ou insular, sem grande importância geopolítica a não ser equilibrar ou intervir contra os poderes continentais que dominassem o Heartland. Segundo Mackinder, quem controlasse o Heartland controlaria a Ilha Mundo e quem controlasse esta, dominaria o Mundo.

É esta a lógica geopolítica que molda há muito o pensamento estratégico russo, de Estaline a Putin, que considera a Finlândia, a Estónia, a Letónia, a Lituânia, a Bielorrússia, a Ucrânia, a Moldávia e até a Roménia e a Bulgária fundamentais para a segurança da Rússia. Sem uma qualquer dissuasão militar, a Rússia tenderá a estender a toda a Europa os seus interesses imperialistas, como fez Estaline no final da Segunda Guerra Mundial.

Na década de 40 Nicolas Spykman, professor de Yale, modificou a teoria de Mackinder.

Para ele o mundo era composto por cinco grandes ilhas continentais: América do Norte, Eurásia, América do Sul, África e Austrália, sendo a Eurásia a chave para a dominação mundial. Os territórios em torno do Heartland, que designou de Rimland, permitiam o domínio do Heartland.

Quem dominasse o Rimland controlava o Heartland e logo a Eurásia. O resto mantinha-se pelo que, em suma, quem controlasse o Rimland controlaria o Mundo.

Foi esta tese que enformou a política externa americana desde então: conter a URSS, assegurando o controlo do Rimland. Truman optou por uma estratégia intervencionista que incluiu   a “contenção”, a OTAN, o Plano Marshall e outros tratados em torno da Ilha Mundo.

Foi essencialmente isso que garantiu a pax americana e a reconstrução europeia após 1945.

Durante décadas, este equilíbrio virtuoso foi mantido pela força americana e pela confiança estratégica. A Europa floresceu embalada nessa protecção, desenvolvendo sociedades de bem-estar e externalizando confiadamente a sua segurança, principalmente após a implosão soviética.

A Ruptura: Isolacionismo e Desordem

Esta arquitetura começou a desmoronar-se com o ressurgimento do isolacionismo nos Estados Unidos e com a ascensão da China. A administração Trump parece ter abandonado ou esquecido a geopolítica e adoptado uma nova visão transacional do poder: as alianças são válidas enquanto servem interesses imediatos, a segurança coletiva é negociável, e os compromissos históricos podem ser relativizados. O “Rimland” europeu pode ficar para a Rússia, já que a China tem poder suficiente para pôr em causa o Heartland e assenhorear-se ela mesmo da Ilha Mundo. Spykman dá voltas no túmulo e para já o Kremlin rejubila.

Os indicadores dessa abrupta mudança estão nas notícias e declarações: desde a a Groenlândia até ao distanciamento da Europa e a desvalorização da OTAN, passando pela ideia de incorporar o Canadá como mais um estado dos EUA e o reafirmar do controle do Canal do Panamá, tudo aponta com clareza para o isolacionismo estratégico americano   A retirada caótica do Afeganistão apenas confirmou que a América — tanto sob republicanos como democratas — se mostra cada vez mais hesitante em afirmar poder para controlar o Hearland.

A Europa, desprevenida e complacente, vê-se hoje confrontada com a dura realidade: faz parte do Rimland e está entregue a ela mesma. Ou se reergue como actor estratégico, ou arrisca tornar-se num condomínio kantiano sem proteção, exposto às investidas dos que nunca abandonaram a lógica da força.

A Ilusão Perdida

Usando uma célebre metáfora samurai, é melhor ser um guerreiro num jardim, do que um jardineiro num campo de batalha.

A Europa foi, durante séculos, um guerreiro no campo de batalha. A após a Segunda Guerra Mundial, transformou-se em guerreiro num jardim. Desenvolveu-se e criou bem-estar, mantendo, todavia, a espada afiada. Mas após a implosão soviética, deslumbrou-se na ilusão do fim da História, embotou a espada e transformou-se em jardineiro num jardim.

Acreditou que a prosperidade substituiria a política de poder e que normas, tratados e boas intenções paroquiais seriam suficientes para conter ambições imperiais num mundo que acreditava ser já pós-histórico.

Enquanto Moscovo, Pequim e Teerão vestiam as armaduras e faziam jogos de poder usando as cartas da geopolítica clássica, Bruxelas regulava emissões de carbono, diâmetros de maçãs, e quotas de diversidade. Desarmava-se, abdicava de fontes de energia própria e elevava ignorantes como a Greta a ícones da modernidade e profetas de futuros radiosos.

Mas a História é impiedosa com quem esquece as suas regras. A liberdade e a paz não se preservam com boas intenções, mas com poder — militar, político, económico, estratégico. Sem espada, não há jardim que se mantenha florido.  A guerra regressou à Europa e a força voltou a ser a última palavra. Esqueceram-se as lições implacáveis e lúcidas de Mackinder e Spykman.

Infelizmente, os EUA também esqueceram este último e irão pagar igualmente o preço.

Mas agora a Europa só tem uma escolha: voltar à História, organizar-se e rearmar-se para defender o que construiu, ou resignar-se a ver o seu futuro decidido por outros.

Em suma, voltar a ser um guerreiro no jardim e, se necessário, um guerreiro no campo de batalha.

Como volta o guerreiro ao jardim?

Vai levar anos, mas a primeira coisa fazer é interiorizar que tudo mudou e que o futuro está ameaçado.

A seguir há que reconstruir uma base industrial ligada à defesa. Precisamos de soberania tecnológica em sectores estratégicos (drones, ciberdefesa, vigilância, sistemas anti-mísseis, etc) e de capacidade produtiva para garantir a suficiência de munições e plataformas em conflitos de alta intensidade.

Depois teremos de unificar sistemas de comando e controle, logística, coordenação e até doutrinas. A fragmentação actual é uma fraqueza. Seremos batidos por partes. Sem uma cadeia de comando integrada, sem forças conjuntas de alta prontidão, não se conseguirá agir autonomamente face a ameaças graves.

Finalmente há que assumir a dissuasão nuclear num quadro comum, sem o qual haverá inevitavelmente uma corrida nacional a este tipo de armas.

Uma dissuasão nuclear europeia, credível e politicamente sustentada, será a única defesa contra a chantagem russa ou a ameaça de potências emergentes.

A escolha é nossa. Mas o tempo para decidir está a esgotar-se.

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