Observador - 29 abr. 00:16
O apagão político
O apagão político
Sem serviços, à rasca, o povo não acredita em manifestações de intenções e declarações de “vai ficar tudo bem”. Salvo explicações credíveis, no vazio do desconhecimento, sobra apenas ansiedade e caos.
Às horas a que escrevo, os povos peninsulares correm para os supermercados às escuras em busca de água, enlatados e, naturalmente, o providencial papel higiénico. As televisões, intermitentes em alguns casos, explicam que não há razão para alarmes, nem para mudanças de rotina, isto enquanto publicam notícias que dão conta de que não se imagina quando será restabelecido o fornecimento de energia elétrica, referindo o jornalista locutor que, de “acordo com fontes da REN”, tal restabelecimento poderá tardar até uma semana — coisa pouca, portanto.
Das autoridades, zero. Um telefonema do ministro Amaro fala em lidar com serviços de informação, urgências hospitalares asseguradas e garantias de “ordem pública” e, mais tarde, o Primeiro-Ministro, casualmente, à porta do Conselho de Ministros, de passagem, explica que o apagão “é uma inconveniência”, que a culpa não é portuguesa, que está informado de tudo, mas que vai até à REN para se informar melhor, que espera que a coisa se resolva ainda no dia de hoje, mas que não garante. Quando questionado sobre se há algum ataque cibernético diz que nada o indica; já sobre o tal prazo de uma semana que jornalistas indicam como sendo informação proveniente da REN diz que acha que não, mas que os jornalistas saberão melhor que ele. E lá foi ele.
Não estou a exagerar, foi mesmo assim que se passou para a reportagem do próximo ponto de informação, um supermercado atulhado de gente apreensiva a arrebatar garrafas de água e, depois, para uma senhora a reclamar dos estores eléctricos que, “porque estava muito sol”, tinha corrido para baixo, razão pela qual agora tinha a casa às escuras — sem luz e sem sol. Neste ponto, pelas 16h30, passam praticamente cinco horas desde que a “ocorrência” começou e, salvo a simpática declaração de circunstância do Primeiro-Ministro, de oficial nada se sabe, nada se espera também, quando a energia voltar, voltará, vai ficar, imagina-se, “tudo bem”.
Da minha parte, de fora, na tranquilidade dos montes, com electricidade própria, internet por satélite Starlink e TV por internet, apenas me apercebi da coisa por um SMS que me interrompeu a tranquilidade do Campeonato do Mundo de Snooker alertando para a situação. Então, ligando-me ao que restava do mundo televisivo português, tudo me pareceu deveras extraordinário. A circunstância, desde logo, de uma natureza a qual, pelo menos eu, nunca tinha assistido, mas também todo um comportamento jornalístico e político que, salvo melhor expressão, me aparece como caricato, senão trágico-cómico. Recapitulando: dá-se um evento inédito, o país fica às escuras, pessoas presas em elevadores, espaços subterrâneos e metropolitanos apinhados de gente encurralada, os semáforos não funcionam, canais de TV em baixo, aeroportos parados e evacuados, transportes públicos completamente destabilizados, as comunicações caídas, tudo isto sem que se perceba porquê, e em não se sabendo o porquê, obviamente, não se pode imaginar quando a coisa se resolverá, salvo num salto de fé de que “vai ficar tudo bem”. Nos entretantos, durante horas sem quaisquer declarações oficiais — salvo que estão a estudar o assunto —, desvaloriza-se a coisa como um inconveniente passageiro que a seu tempo será resolvido.
A falta de informação é sempre o principal motivo para a incerteza, e daí para o pânico e a histeria — um dado assente que não me parece polémico. Do mesmo modo, uma coisa é faltar a luz no país inteiro e rapidamente saber-se que foi um episódio onde a solução já está encontrada e que será resolvido nas próximas horas, apelando-se às pessoas, oficialmente ao mais alto nível, para que, dentro do possível, continuem a sua vida normal, outra coisa completamente diferente é deixar tudo andar ao Deus-dará como se o regular funcionamento das infra-estruturas do país não fosse uma das supremas, porventura primeira, funções do Estado. Com notícias — as quais o Primeiro-Ministro não se deu ao trabalho de desmentir — de que a situação poderia durar até uma semana, será de estranhar que haja caos e tumulto na busca dos bens de primeira necessidade? Ou na porta do autocarro em desespero para ir para casa? Quantas pessoas estão encalhadas a quilómetros de casa dependentes de transportes públicos insuficientes e sem que se saiba quando chegarão? Talvez fosse bom recordar aos senhores decisores que nem toda a gente pode andar tranquila de motorista a “estudar a situação” — há milhões de pessoas, pessoas verdadeiras de carne e osso, que, elas sim, são a situação. Mereciam mais, muito mais.
A casualidade com que jornalistas e políticos trataram o assunto incomodou-me. Para mim é evidente que, independentemente das asserções de que “não há razões para alarme”, uma coisa é certa: sem serviços, à rasca, as massas não acreditam em manifestações de intenções e declarações de “vai ficar tudo bem” e, salvo explicações credíveis, serenas, realistas e, perdoem-me o pleonasmo, verdadeiramente “explicativas”, no vazio do desconhecimento, sobra apenas a ansiedade e o caos. É provável que seja verdade que não se justifiquem tais ansiedades, sem dúvida, mas, por oposição, também é possível que sim, que se justifiquem, que a água — como a EPAL comunicou — possa vir a faltar, que a energia não volte durante tempo suficiente para que se instale o caos, a desordem e, acima de tudo, para que se verifiquem no terreno as consequências daquilo que, no íntimo, todos os portugueses bem sabem — que se houver uma verdadeira tragédia não há ninguém ao volante.
Essa, sim, foi a ideia com que fiquei: com o apagão energético veio um apagão político onde ninguém apareceu no controlo da situação; pior, onde ninguém sequer quis aparecer como se estivesse. Pelo contrário, politics as usual, houve que desvalorizar e desresponsabilizar — tanto que, segundo vejo agora pelas 18h00, quem se anuncia como vindo falar ao país às 20h00 da noite — ou aos poucos que como eu tenham acesso a energia e TV —, é um “administrador da REN” e não o Primeiro-Ministro do país — esse, depreendo, aparecerá mais tarde, quando a coisa estiver resolvida. Eis em todo o seu esplendor o modus operandi político da parola e triste política moderna que se repete a cada crise: “estamos a acompanhar”, “não há razões para alarme”, “vai ficar tudo bem” e, claro está, “a culpa não é nossa”, apresentando o chefe nos momentos difíceis um qualquer desgraçado “carne para canhão” (i.e. o Cabrita do Costa), colhendo os louros depois, quando o chão já é seguro e o povo está sereno. Ideal mesmo seria, como na pandemia, que Bruxelas tivesse dado instruções sobre como resolver o imbróglio, aí sim, a desresponsabilização seria total.
Não, não há de facto ninguém ao volante, cada um trata de si, e dos outros logo se vê, assim na vida como na política. O Estado, sem energia eléctrica tornado uma mera ficção, serve, portanto, para quando a vida corre normalmente — acima de tudo para cobrar impostos e aplicar medidas “de justiça social”. Já os políticos, esses servem para explicar e justificar porquê, e como, cobrarem-se tantos impostos, bem como quais as medidas de justiça social que devem ser tomadas — ou seja, quem é que paga e quem é que recebe. Pelo caminho, claro, ficam os “reais problemas das populações”, algo que serve de parangona, de slogan e de discurso, mas que, quando a porca torce o rabo, não serve para nada — há que desvalorizar e desresponsabilizar, salve-se quem puder, “o problema não originou aqui”.
Ora, o problema de um apagão da infra-estrutura eléctrica inteira nacional não é nosso? Claro que não. Não foi a opção política do país apostar nas inefáveis “renováveis”, não foi a negociata infinita dos moinhos de ventos que explodiu com as contas da luz dos portugueses, não foi a maluqueira não-científica e completamente corrupta das hiper-exploradas e hiper-dimensionadas “alterações climáticas” que ditou a política energética do país nas últimas décadas. Claro que não, claro que o problema não originou aqui, não tem a nada a ver, aliás, com terem-se fechado as centrais a carvão e de bio-massa, ou com agora imaginar-se investir o que não se tem em mais moinhos de vento, desta feita, no oceano, tudo em nome da “transição”, uma transição que, não apenas nunca ocorrerá, como, pior, até que se aceite que nem deveria ocorrer, custará ao erário público milhares de milhões, décadas de atraso tecnológico e a irrelevância económica europeia no mundo internacional, uma loucura que será gozada por quem cá viver no futuro, mas que o actual governo ainda papagueia e repete como guião decorado e declamado por obrigação — Bruxelles oblige.
Claro que não, pois claro, claro que o “problema não foi gerado cá”, porque não foi cá que não se desligaram os sistemas de apoio, que não se acautelaram possíveis quebras significativas de vento e sol, porque não foi cá que se demonizou o gás e o carvão, ao ponto de nem preparados estarem para, no mínimo, entrarem em funcionamento numa circunstância que o exigisse — como esta. Claro que não, nós, os portugueses incluindo os seus estoicos representantes, não têm nada a ver com isto. Mais importante, a “culpa também nunca terá sido nossa”. A seu tempo, quando toda esta trapaceira palhaçada energética europeia, por necessidade das circunstâncias impostas pela inevitável realidade dos factos e da geoestratégia, finalmente acabar, quando a poeira da propaganda levantar, a culpa terá sido, naturalmente, de Bruxelas, talvez da desinformação russa ou, quem sabe, de Donald Trump — mas nunca dos governantes europeus, afinal esses estavam apenas a cumprir ordens, o velho adágio que, como Arendt explica, banaliza tudo, incluindo o mal. E estavam, é certo, daí que todo este apagão político, toda esta desresponsabilização, toda esta sensação de que ninguém, de facto, está no volante, apenas seja possível num deplorável momento histórico em que os “responsáveis” políticos deste país, parola e provincianamente, entregaram as chaves e a soberania nacional “à Europa” — afinal, “lá fora” é que é bom e “lá no estrangeiro” é que sabem.
Não está ninguém ao volante não, porque, tirando as dezenas de milhões de euros que, a mando do Estado, e com o carimbo de Bruxelas, trocam compulsivamente de mãos todos os anos, o resto, desde a infra-estrutura eléctrica até aos direitos liberdades e garantias dos portugueses, são pormenores fora da política que escapam à habitual discussão sobre vírgulas no parlamento onde, virtuosamente, nas grandes causas, estão todos de acordo. Esses pormenores, em boa verdade, apenas têm que cumprir dois critérios fundamentais: não pesar no Orçamento, não infringir as directrizes da Comissão. Eis, em suma, o resultado da última década de governação Costa e à qual Montenegro não se parece opor: a dissolução do país no todo que é a UE e que dita o bom, o mau, o futuro e, a seu tempo, até o passado — o alfa e o omega da política nacional.
Daí que o Primeiro-Ministro, no fundo, tenha razão: o “problema”, de facto, não veio de cá — na realidade, foram os políticos que, a expensas da soberania nacional, por conveniência própria, nomeadamente a eleitoral, pressurosa e diligentemente o importaram.
Não deixa de ser curioso que este vazio político se revele na mesma semana em que a deputada do PSD, Teresa Morais, elaborou um dos mais vergonhosos discursos na história da PSD e da Assembleia da República: por ocasião do 25 de Abril, teve o topete de, seguindo o próprio Primeiro-Ministro e o ministro da propaganda Pedro Duarte, vir advogar, sem pejo nem vergonha na cara, a necessidade da censura das redes sociais para garantir o regular funcionamento do “regime democrático”. É exasperante ter que ver e ouvir tanta estupidez, tanta ignorância, ao ponto de se afirmar aquilo que se nega numa mesma frase, mas, ainda assim, não deixa de ser revelador — primeiro, que a agenda censória da UE não abranda; depois, que a dependência formal e factual de Portugal e dos seus governantes ao mando de Bruxelas é tão grave, e tão subserviente, que estão dispostos esses alegados representantes do interesse nacional a trair os portugueses abdicando dos direitos, liberdades e garantias do nosso povo em nome de uma agenda que, como todos sabemos, não é nossa — é importada.
Que esse discurso de má memória e pior ainda prenúncio, ocorra na mesma semana onde, num segundo, por força das “grandes opções políticas” energéticas das últimas décadas, fica o país inteiro horas à beira do caos, é também profundamente coerente na sua contradição: que ao cada vez maior abandono do povo português a si próprio e às vicissitudes da vida — veja-se a saúde, por exemplo — corresponda uma cada vez maior carga fiscal e garrote político. Uma contradição, é certo, mas apenas na aparência, pois que ambas correspondem às naturais consequências dos regimes não-democráticos e anti-liberais: quanto mais centralizado o poder, menor a riqueza; quanto menor a riqueza, maior a necessidade de controlo político sobre a população — para o nosso próprio bem-estar democrático, claro.