www.sabado.ptPaulo Lona - 28 abr. 22:07

O manifesto dos 50 “on tour”

O manifesto dos 50 “on tour”

Opinião de Paulo Lona

A magistratura do Ministério Público, tal como hoje a conhecemos - moderna, autónoma e democrática -, nasceu com o 25 de Abril de 1974. Foi a Revolução dos Cravos e o regime democrático que dela resultou que permitiram a criação, em Portugal, de um Ministério Público verdadeiramente independente. Como sublinhou Souto Moura, antigo Procurador-Geral da República, a restauração da democracia trouxe uma dupla emancipação: por um lado, a separação da magistratura judicial; por outro, a autonomia do Ministério Público face ao Governo. 

A 14 de maio de 1974, com a Lei n.º 3/74, foi devolvida aos tribunais a designação de "poder judicial" e, a 12 de junho do mesmo ano, o Decreto-Lei n.º 251/74 pôs fim à exclusão das mulheres do acesso à magistratura do Ministério Público. Existe, assim, uma ligação profunda entre as conquistas de Abril e o enquadramento constitucional e legal da magistratura do Ministério Público. 

Antes do 25 de Abril, o Ministério Público estava subordinado ao poder executivo, sem autonomia, com a carreira dependente do Ministério da Justiça e sujeito a ingerências políticas frequentes. Não existia uma separação clara entre o poder político e o judicial, o que comprometia a imparcialidade e a eficácia da justiça. 

Contudo, passados 51 anos, há ainda quem, no espaço político e mediático, defenda um retrocesso: um Ministério Público com contornos autocráticos, sem investigação independente e com uma autonomia limitada, permitindo o controlo político dos processos mais sensíveis.  

As preocupações de alguns não se centram no funcionamento eficaz, rigoroso e célere da justiça, nem lhes interessa o trabalho diário, dedicado, dos magistrados do Ministério Público, as suas funções sociais, ou as dificuldades e insuficiências que enfrentam. Na realidade, apenas se mostram interessados por um punhado de processos concretos, dos quais pretendem extrair conclusões enviesadas. 

O denominado "manifesto dos 50" encontra-se atualmente em digressão para difusão das suas ideias para a Justiça, e, em particular, sobre o Ministério Público, tendo publicado um conjunto de textos que demonstram claramente o que pensam e que tipo de mudanças defendem. 

A leitura de alguns textos, como os do Professor Paulo Mota Pinto e do General Vasco Gonçalves, revela claramente os perigos que tais ideias representam para o sistema de justiça e para a separação de poderes.  

Afinal o objetivo é mesmo subordinar o poder judicial aos outros poderes do Estado (já antes alguns lhe tinham chamado "quebrar a espinha"). 

O artigo de opinião de Vasco Lourenço é claro como água: "Não duvidemos: a situação só melhorará, quando o Poder Judicial for controlado pelos outros Poderes, formados através de eleições". 

É este o Estado de Direito defendido pelos subscritores do manifesto dos 50? 

É sempre bom saber. 

Algumas lições do que é realmente um Estado de Direito e a separação de poderes neste são bem vindas. 

É igualmente preciso explicar aos subscritores do manifesto o que é o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), que pelos vistos lhes causa muito transtorno e sobressalto. O que só por si é significativo do conceito de democracia em que não devia existir essa chatice dos sindicatos que tomam posição, se expressam na praça pública contra as ideias de outros.  

Alguns até dizem que o SMMP não deveria existir. 

E porquê ficar por aí. Se começarmos por proibir os sindicatos de que não gostamos, porque não queimar os livros onde constam as ideias que eles defendem !!! Proibi-los de falar !!! Quietinhos e sem abrir a boca é que eles estavam bem…,mas, não.  

A democracia implica o direito à existência de sindicatos e à expressão pública das suas posições, mesmo quando estas contrariam interesses instalados. 

É de lamentar que 51 anos depois de abril seja necessário esclarecer o papel de um Sindicato, cuja existência e intervenção pública parece incomodar alguns.  

Entre as propostas mais preocupantes está a alteração da composição do Conselho Superior do Ministério Público, sugerindo-se que passe a ser dominado por membros externos à magistratura, o que abriria caminho ao controlo político da instituição. 

Defende, entre muitas outras coisas, Paulo Mota Pinto que – na senda do múltiplas vezes afirmado por Rui Rio – deve ser alterada a composição do "Conselho Superior do Ministério Público (artigo 22.º do Estatuto do Ministério Público), para que passe a ser integrado por uma maioria de membros não pertencentes ao Ministério Público (por exemplo, com redução para três dos procuradores eleitos pelos seus pares e nomeação de três mesmos pelo Presidente da República)". 

É, recorrentemente, necessário recordar que Portugal é um Estado membro da União Europeia e do Conselho da Europa, estando vinculado a um conjunto de recomendações em matéria de Justiça, nomeadamente de autonomia, interna e externa, do Ministério Público e que a alteração em causa iria contra essas recomendações. 

Ou queremos trilhar os mesmos caminhos seguidos nos EUA, Turquia, Israel, Hungria ou Polónia? Ou os ataques fortíssimos que ocorrem em França e Itália ao sistema judicial.   

Como se concluiu recentemente em conferência relativa ao papel de cada um dos sujeitos no Processo Penal, o Conselho Superior da Magistratura tem uma maioria de não magistrados (embora não na prática), mas possui consagrada a independência individual de cada juiz (ao contrário do Ministério Público). Tendo o Ministério Público uma estrutura hierarquizada, com o controlo externo do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) estariam criadas as condições para o efetivo controlo de todo e cada um dos magistrados (não esquecendo que o CSMP tem o poder de nomeação e transferência de magistrados e o poder disciplinar contra estes). 

É legítimo questionar se este é o Estado de Direito que os subscritores do manifesto pretendem. O Estado de Direito exige o respeito pela separação de poderes e pela autonomia das instituições judiciais, princípios que foram conquistas fundamentais de Abril e que distinguem Portugal das experiências de outros países onde o poder executivo controla o Ministério Público, como acontece por exemplo nos Estados Unidos, Turquia, Hungria ou Polónia. 

Muito surpreende que este movimento, tão atento às questões de justiça, não faça referência aos ataques que, por toda a Europa e no mundo, visam o controlo do poder judicial e, em particular, do Ministério Público. Pretenderão, porventura, um Ministério Público dependente do executivo, à semelhança do modelo americano, onde não existe independência nem autonomia do Ministério Público, estando este sujeito ao controlo do poder executivo, com todas as consequências que diariamente se observam nas notícias relativas aos Estados Unidos - sendo o caso mais recente a detenção, pelo FBI, de uma juíza no próprio tribunal onde exercia funções. 

Mais crónicas do autor 07:00 O manifesto dos 50 “on tour”

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