publico@publico.pt - 28 abr. 19:06
“Vou a correr ao carro ouvir o noticiário das cinco”
“Vou a correr ao carro ouvir o noticiário das cinco”
Cinco horas em Lisboa sem electricidade, sem telefone, sem internet e, pior de tudo, sem informação. Crónica de um dia ansioso e tenso
O dia quente na capital portuguesa parecia acelerar a tensão, a ansiedade e o medo do apagão. Nas esplanadas, as pessoas tentavam superar a anormalidade e a falta do café com água tépida. Nas ruas, caminhavam em passo talvez mais lento como quem percebeu que nada há a fazer contra as custas da instabilidade atmosférica ou dos ciberataques. Nos transportes públicos, percebia-se melhor o nervosismo, a irritação com tantos transtornos e a aflição com a falta de informação. Numa rua da Ajuda, uma mulher caminhava a passo apressado enquanto dizia a uma vizinha: “Vou a correr ao carro ouvir o noticiário das cinco”.
A falta de electricidade teve o condão de mostrar as nossas fragilidades colectivas. No terminal rodoviário da Rede Expresso, uma mulher tentava a todo o custo negociar com um taxista uma corrida para a Baixa. Jorge, lamentava: nada a fazer, “Se não tem dinheiro, eu não tenho o multibanco a funcionar”. Era preciso fazer contas para se saber até onde era possível ser livre. Quinze euros era mais do que suficiente para a viagem, e continuou a ser suficiente para uma fuga ao caos do trânsito no Eixo Norte-Sul. Siga.
Nas imediações de Monsanto, um homem jovem e uma senhora de idade acenavam aflitos para o táxi. Jorge, um homem musculado com braços cheios de tatuagem e uma reforma por acidente de trabalho viu-lhe nos rostos sinais de desespero. Concordámos em levá-los connosco. O homem, João, vinha de uma tentativa frustrada de intervenção cirúrgica num hospital privado das imediações, chegara a ser sedado e estava ali com a mãe à espera de transporte. A sensibilidade de Jorge salvou-os da espera. Deixaram-me na Ajuda e continuaram até Marvila numa viagem que podia demorar tempos infinitos, dado o estado do trânsito.
No pequeno café do Rio Seco, era outra vez necessário fazer contas. O que almoçar com cinco euros? Em conversa construtiva com a empregada, uma jovem morena cansada de avisar que só aceitava pagamento em dinheiro, lá se chegou a uma receita feliz: um lanche, um bolo de arroz e uma cola. O dinheiro acabara e duas horas depois era necessário chegar ao Instituto Superior de Agronomia onde estava marcada uma conferência com candidatos a deputados. Tinha sido cancelada, claro, mas fora impossível saber por falta de rede nos telefones móveis.
Estava então na hora de tentar chegar ao PÚBLICO, nas docas de Alcântara. Sem dinheiro para o táxi, restava o 760. Não sabia se o cartão de viagens tinha saldo, mas não havia alternativa. Não tinha, mas logo o motorista levantou a cabeça acima da cabina para dizer que, num dia como aquele, com os multibancos desligados, era o que faltava tornar ainda mais infernal a vida das pessoas. Bar aberto na Carris.
No autocarro, o tempo da viagem tornava mais fácil perceber a ansiedade. Uma mulher explicava a outra que tinha de ir buscar à pressa o filho à escola. Outro lamentava os congelados ameaçados pelo apagão. Um jovem brasileiro com a camisola do Flamengo fazia as contas à carga no telemóvel. No Calvário, a fila de espera era enorme e alguns passageiros começaram a entrar pela porta de trás. O motorista ergueu-se de novo na cabina e deixou avisos e ameaças. Um homem de 68 anos, reformado, que “tinha trabalhado a vida inteira” queixou-se contra o “vale tudo” dos estrangeiros que, “mais tarde ou mais cedo ainda vão dar razão ao Chega”. Na sua posição, não lhe fora talvez possível notar que quem entrara fora das regras foram dois brancos jovens, duas mulheres brancas de meia-idade e dois estrangeiros de ar nórdico.
No pequeno recinto desportivo em frente ao PÚBLICO, Lisboa recuperava um pouco o ar da sua normalidade. Jovens esturricavam ao sol em corridas com bolas de basquete. Lá dentro, na penumbra, corria-se contra o tempo. Era preciso fechar a edição impressa (fechou às 18h30, um dia recorde) antes que a carga do gerador acabasse de vez. O dia não fora normal, mas nada estava perdido. Como o João e a mãe no táxi, a mulher ansiosa pelas notícias, o motorista do 760 ou a senhora indignada com a perda dos congelados, vivera-se um dia de contratempos. Um dia normal, só que com contratempos inusitados e por isso um pouco mais aflitivos. Um pouco mais.