www.sabado.ptPaula Cordeiro - 28 abr. 08:05

Ouvir música (já não) é sustentável

Ouvir música (já não) é sustentável

Opinião de Paula Cordeiro

Há coisas que só se percebem quando o mundo fica em silêncio. Como a própria Internet, também o streaming de música se tornou insustentável. Ou será que sempre assim foi?

Houve um tempo em que a música se empilhava. Discos, cassetes, cd’s. Era colecção, prazer, até estatuto. Um objecto fisico que carregávamos debaixo do braço, emprestávamos, gravávamos para partilhar ou simplesmente copiar sem pagar. E estava tudo bem, parecia que o lucro na indústria discográfica chegava para todos, mesmo quando nem pagávamos para ouvir. Os artistas dedicavam-se mais a criar, menos a fazer outras coisas. Os concertos eram menos espectaculares e mais musicais. Talvez fosse tudo, apenas diferente. Mas as tendências não mentem e os movimentos estão a acontecer, por uma indústria mais justa e equitativa, por mais música e menos ambição. 

Longe vão os dias, ou noites, colados ao rádio, cassete no gravador e dedo pronto, como quem coloca o dedo no gatilho, para pressionar o botão e gravar a emissão. De preferência sem a voz do locutor a apresentar a música, ou a voz da estação. Eram os dias da rádio e da música que ouvíamos com cortes, por vezes apenas parte da música. Havia uma relação emocional com o disco que gravávamos numa cassete para um amigo, ou uma mixtape que nos dedicávamos a fazer para podermos ouvir, sem parar, a música de que mais gostávamos, que levávamos, não no bolso, mas presa à cintura, no walkman que tocava, enrolava a cassete ou parava quando a pilha acabava. As playlists não eram infindáveis, a busca por novidades obrigava a procurar, supunha interacção e, apesar de alguma individualização que o walkman e, depois o discman veio permitir, a partilha ultrapassava o envio de uma hiperligação. Era mais do que isso e, mesmo que o ambiente digital facilite a criação playlists partilhadas, eventos online ao vivo ou a descoberta da mais recente novidade nas redes sociais digitais, a verdade é que a música, além de experiência, é negócio e, esse negócio, é insustentável. Sempre foi, mesmo quando acreditávamos que éramos todos felizes: músicos, indústria e amantes de música. 

Quando se abriu a caixa de Pandora, a música passou a estar disponível de muitas formas, boa parte das quais, ilegal. O lucro diminuiu e, por consequência, o dos músicos também. Já não estávamos todos a ganhar, excepto quem ouvia música sem pagar. Novo volte-face, num lento processo de reeducação social. Afinal, a música que era nossa, que guardávamos em casa em colecções de discos, passou a ser de todos, e a estar acessível a todos, através de servidores espalhados pela Internet. Além dos amantes de música, mais ninguém gostou. Surgiram opções legais para ouvir música. Pagas. Ou com anúncios que, em Portugal, soavam a tudo menos à língua portuguesa, num tom irritante, repetitivo, monocórdico. Nunca saberei se era uma estratégia para angariar subscritores ou se realmente aquilo funcionava para as marcas. 

A evolução foi rápida e, quando demos por isso, o Spotify era a principal plataforma para ouvirmos música, sem nos apercebermos que, recursos como o Spotify Discover Weekly (listas de reprodução personalizadas) e Spotify Wrapped, criaram uma experiência tão personalizada que nos fechou sobre nós próprios, ouvindo sempre mais do mesmo, contrária à experiência na qual éramos expostos a géneros e estilos diversificados. A não ser que saibamos como funciona um algoritmo musical, tudo mudou, excepto o modelo de negócio que continua a basear-se numa relação comercial que depende de quem paga para ouvir música. Como sempre foi. O que mudou, e porque razão deixou de funcionar? O que leva artistas a manifestarem-se contra este modelo, outros a criarem plataformas alternativas, a lançarem a música nos seus sites ou, como a mais recente manobra de Moby, oferecer música online gratuitamente?

O Spotify é uma das empresas de tecnologia mais valiosas no sector da música, surgiu como uma resposta à pirataria. Posicionou-se na vanguarda mas continua a debater-se pela sua sustentabilidade financeira, tal como os músicos que se queixam do pouco que recebem pela música que toca nestas plataformas, ou os que não ganham mesmo nada. Há uma distribuição muito pouco equitativa, numa indústria que fatura milhões e da qual pouco ou nada se sabe sobre onde vão parar esses milhões. A nós, que já não gravamos a música que toca na rádio e que escolhemos ter acesso a uma biblioteca infindável de música, que nunca conseguimos conhecer na totalidade porque, não só não temos tempo ou capacidade para tal, como esta se esconde atrás de algoritmos que, se não procurarmos activamente, personalizam aquilo que conseguimos ouvir, resta-nos continuar a pagar. Pagamos pela promessa do acesso, da personalização, conforto de escuta, partilha, flexibilidade e a escuta em qualquer lugar, mesmo que a música nunca seja nossa, trocando a ideia de posse pela de utilização, num compromisso que não nos compromete e deixa, nas mãos de terceiros, o acesso ao que um dia parecia ser nosso: a música de que mais gostamos. Vale a pena pagar pelo acesso sem que a música, algum dia, esteja empilhada em montes ou em prateleiras, na nossa sala, em vez de estar algures, acessível apenas através de um dispositivo digital? Os tempos são do regresso do vinil, quem sabe, até, do leitor de cassetes. Iremos voltar a fazer mixtapes à moda antiga? Talvez não mas, se isto não é um dos melhores exemplos da insustentabilidade que a tecnologia também provoca, então, não sei o que será. Mais crónicas do autor 07:05 Ouvir música (já não) é sustentável

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