publico@publico.pt - 28 abr. 07:38
“Guiana Brasileira” e memes como marcadores de identidade coletiva
“Guiana Brasileira” e memes como marcadores de identidade coletiva
Na cultura digital, os memes emergem como um novo código de expressão, e os brasileiros parecem ter entendido plenamente o poder dessa comunicação.
Os artigos da equipa do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa usada no Brasil.
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Como diz o ditado popular contemporâneo: "Quem tem limite é município, o brasileiro não". Há alguns dias, um meme tem provocado debates acalorados nas redes sociais (enquanto o calor não chega definitivamente às terras lusitanas). De um lado, brasileiros compartilham fervorosamente a mais nova trend de amor e ódio entre Brasil e Portugal nas redes sociais: o meme da "Guiana Brasileira" ou "Portugal em pé".
No auge da brincadeira, houve uma enxurrada de conteúdos, desde imagens da bandeira do novo território fictício, com o brasão e o lema "Ordem e Bacalhau" (paródia do "Ordem e Progresso" da bandeira brasileira), até a inserção de um marcador no Google Maps e a criação de uma página na Wikipédia por internautas animados com a ideia do 28° estado brasileiro ou por aqueles que só desejavam surfar na onda de likes e engajamento.
No livro Internet Memes and Society, a pesquisadora, Anastasia Denisova, explora o papel dos memes na sociedade e na política, analisando desde a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014 até as eleições presidenciais dos EUA em 2016. Os memes funcionam como ferramentas estéticas interativas, estimulando criatividade e conexão entre indivíduos.
Sua natureza mutável permite que usuários adaptem narrativas conforme suas visões de mundo, transformando-os em instrumentos dinâmicos de comunicação. Além disso, atuam como "molduras interpretativas", estruturando ideias e direcionando sua compreensão, o que facilita a expressão de identidades coletivas e políticas no ambiente digital.
Os memes consolidaram-se como uma forma de “dizer coisas” sem assumi-las completamente, sintetizando humor, crítica social e identidade cultural em formatos virais. Entre os brasileiros, essa linguagem ganha contornos únicos, mesclando irreverência, criatividade e, por vezes, polêmica. O fenômeno "Guiana Brasileira", que brinca com a ideia de uma anexação fictícia de Portugal ao Brasil, ilustra como os memes transcendem o entretenimento para refletir dinâmicas geopolíticas, identidade nacional e questões políticas.
Com a crescente presença da imigração brasileira em Portugal, é inevitável que influenciemos as dinâmicas culturais locais, um processo que não cabe em juízos binários de "bom" ou "ruim". Como herdeiros de um legado colonial, parte dos portugueses se sente invadida por certas brincadeiras, reagindo com indignação à "invasão" brasileira (tanto nas ruas quanto nas redes sociais). Um exemplo foi o caso da influenciadora Nokas, que publicou um vídeo contestando as piadas envolvendo Portugal.
Do outro lado, o meme da Guiana chegou a ser mencionado no podcast “Disto o Nuno Rogeiro Não Fala”, na Rádio Comercial, em que o apresentador estendeu a brincadeira renomeando cidades dos Estados Unidos a partir de referências da cultura brasileira. Já o artista queer NOUÃ, imigrante que vive em Portugal há nove anos, publicou um “pedido de desculpa” para lá de criativo, reconhecendo o processo de colonização reversa e ironizando a violência cultural que uma família brasileira poderá causar aos locais ao reunir-se num domingo para fazer um churrasco.
Como marcadores identitários profundamente políticos, que ora provocam risos, ora acirram disputas simbólicas, nesse jogo de humor e tensão, Brasil e Portugal reescrevem, mesmo que virtualmente, as fronteiras de um passado colonial que ainda ecoa. E, por isso, incomoda tanto ambos os lados.
Em se tratando de liberdade de expressão, não há fórmulas de dizer se isso é certo ou errado. Se é ou não é desrepeito a uma cultura ou um povo. O que não se pode nunca perder de vista é que a linha entre o humor e a xenofobia, o amor e o ódio, a paz e a guerra é tênue, seja do lado de cá ou de lá do Atlântico. E brincar sobre a anexação de territórios independentes não deixa de ser uma piada perigosa. O passado e o presente que o digam.
Por último, epá, não nos levem tão à serio!
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