observador.ptobservador.pt - 29 abr. 15:06

Focadas em Trump, eleições canadianas acabam em "desastre" dos conservadores e com uma reviravolta inédita

Focadas em Trump, eleições canadianas acabam em "desastre" dos conservadores e com uma reviravolta inédita

As eleições do Canadá revelaram-se inéditas: uma renhida corrida a dois, que ignorou pequenos partidos e pôs Trump no centro na agenda. Os liberais ganharam, invertendo as tendências das sondagens.

Quando Mark Carney subiu ao palco da sede de campanha do Partido Liberal, na madrugada desta terça-feira, era a ilustração viva do resultado das eleições federais canadianas: sorriso no rosto, aplausos e gritos efusivos dos seus apoiantes, e cumprimentos animados entre as dezenas de pessoas em cima do palco. Afinal, com menos de dois meses de experiência na liderança dos liberais, Carney alcançou um feito histórico, ao conseguir reverter os 25 pontos percentuais de desvantagem para o Partido Conservador nas sondagens e conquistar o maior número de lugares no parlamento do Canadá.

Há uma explicação unânime para esta reviravolta: Donald Trump. Carney alimentou a sua campanha com os sentimentos anti-Trump que a guerra de tarifas desencadeada pelo Presidente norte-americano geraram no país e proclamou a morte da relação amigável entre Washington e Otava. “O Presidente Trump está a tentar quebrar-nos para que a América possa ser nossa dona, isso nunca vai acontecer”, declarou no seu discurso de vitória. “Ultrapassámos o choque da traição americana, temos de tomar conta um dos outros”, continuou.

O antigo governador do Banco do Canadá subiu ao palco para reclamar vitória quando as projeções já davam o primeiro lugar ao Partido Liberal, ainda sem apontar se chegavam a uma maioria absoluta. A vitória pessoal de Carney surgiu enquanto ainda discursava, quando os resultados oficiais confirmaram que tinha vencido no círculo de Nepean, Ontário — marcando, assim, a primeira vez que o economista ocupa um lugar no parlamento. A acumulação dos fatores resultou numa noite de festa para o Partido Liberal.

A “raiva” dos canadianos contra o “bully na Casa Branca”. Canadá entra em campanha eleitoral com Trump no centro da agenda

Este ambiente não podia contrastar mais com o que se vivia à mesma hora na sede do Partido Conservador. O líder Pierre Poilievre concedeu a vitória e prometeu continuar a trabalhar e colaborar com o governo perante uma plateia desiludida com a derrota numas eleições que, há alguns meses, pareciam uma vitória garantida. “Um choque“, classificou Aaron Ettinger, professor de ciência política na Carleton University, ao Observador. Mas o maior choque ainda estava por chegar: Poilievre perdeu a corrida no círculo de Carleton, Ontário e, consequentemente, o lugar que ocupava há duas décadas no parlamento, segundo as projeções, com 99% dos votos apurados.

Portanto, o mérito da vitória liberal não cabe apenas à forma como Mark Carney fez frente à questão Trump, apontam os cientistas políticos canadianos ouvidos pelo Observador. Uma parte do sucesso do Partido Liberal é explicada pela campanha “desastrosa” do Partido Conservador. Também pesaram os padrões de voto “irregulares” que prejudicaram os partidos mais pequenos em detrimento dos dois maiores partidos.

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As eleições federais de 2021 sentaram no parlamento canadiano 151 deputados liberais, numa campanha e legislatura que foram marcadas pelo combate à crise na habitação e ao aumento do custo de vida. Desta vez, estes temas foram “ofuscados” pelas “tarifas de Trump e a sua ameaça de anexar o Canadá” destaca Stephen Azzi, professor de gestão política na Carleton University, ao Observador. A forma como os partidos souberam lidar com esta preocupação ditou, em grande parte, os resultados. Para o Partido Liberal, isso traduziu-se num crescimento que lhe permitiu chegar — com 99% dos resultados apurados — aos 168 deputados, a apenas quatro lugares dos 172 necessários para uma maioria.

O discurso de vitória de Mark Carney refletiu o último mês de campanha, em que assumiu uma postura firme na defesa dos interesses canadianos, em detrimento da cooperação aprofundada que deixou Otava dependente das oscilações políticas no seu vizinho a sul. A nível económico, respondeu às tarifas sobre a importação impostas pela Casa Branca. A nível político, exigiu que o Presidente norte-americano cessasse as ameaças de anexação.

No dia das eleições, Donald Trump voltou a insistir na ideia de transformar o Canadá no 51.º estado americano. Antes e depois da vitória, a resposta de Carney foi a mesma: “Isto é o Canadá, nós é que decidimos o que se passa aqui.” A par do confronto com o Presidente norte-americano, o primeiro-ministro canadiano voltou a apontar esforços para o estabelecimento de alianças internacionais noutros pontos do globo.

Ainda assim, apesar de ter declarado uma e outra vez o fim da amizade entre Estados Unidos e Canadá, o líder dos liberais mostrou-se disponível para dialogar sobre “o futuro de duas nações soberanas” com Trump. Aliás, no seu discurso de vitória disse que o faria “nos próximos dias”. Aaron Ettinger argumenta que este poderá ter sido um dos trunfos de Mark Carney.

O Partido Liberal estava a atravessar um momento de impopularidade crescente, inseparável da queda na popularidade de Justin Trudeau, que o liderou durante mais de uma década. “A saída de Trudeau permitiu que eleitores erráticos regressassem aos liberais, ao verem Carney como uma alternativa para confrontar o Presidente norte-americano”, avalia Aaron Ettinger. A impopularidade de Trudeau estava ligada à incapacidade do seu governo para resolver os problemas da habitação e do custo de vida. Apesar de ter assumido uma postura igualmente firme contra Trump, seria improvável que Trudeau fosse bem-sucedido nos mesmos diálogos que Carney prometeu encetar com Washington.

O Presidente dos EUA e Trudeau tinham uma relação disfuncional que impediu relações saudáveis entre os dois líderes“, considera o professor de ciência política. A capacidade de Carney “confrontar” Trump, argumenta, não deverá ser feita atrav��s de um braço de ferro prolongado, já que o Presidente norte-americano “não pode ser controlado”. Em vez disso, a aposta deverá ser “uma clássica abordagem ‘Equipa Canadá’”, que articule todos os níveis do governo local e federal canadiano na negociação e lobby com os seus pares norte-americanos, remata. Os “valores canadianos” que Carney definiu no seu discurso de vitória refletem esta possível estratégia: “Humildade, ambição, união.”

A saída de Trudeau foi, portanto, uma oportunidade para o partido. No final do ano passado, com um governo liberal e eleições marcadas para o final de 2025, “toda a gente assumia que os liberais estavam condenados“, declara Ettinger. Mas Carney conseguiu distanciar-se das questões negativas do governo de Justin Trudeau e focar nas eleições num único tema: como responder à ameaça de Donald Trump sobre a soberania e economia canadianas. A proposta pareceu convencer os canadianos, dada a vitória desta segunda-feira.

O “desastre” na campanha conservadora e a queda do líder Pierre Poilievre

No final de 2024, as sondagens apontavam claramente quem seria o novo primeiro-ministro canadiano daí a um ano: Pierre Poilievre, de 45 anos, líder do Partido Conservador. As eleições desta segunda-feira não só não elevaram Poilievre a primeiro-ministro, como o fizeram cair: o conservador não conseguiu ser eleito e perdeu o lugar no parlamento que conquistou com apenas 24 anos e que ocupava ininterruptamente desde 2004, segundo as projeções finais que levaram o seu opositor liberal no círculo de Carleton a proclamar a vitória.

“Depois de dez anos de governo liberal, os canadianos sentiam que era tempo de mudança e há poucas forças na política canadiana mais fortes do que o desejo de mudança”, considera Stephen Azzi ao Observador, numa referência aos três governos consecutivos liderados por Justin Trudeau. Contudo, o “murro” de Donald Trump na política externa norte-americana abanou o barco da política canadiana e os conservadores mostraram-se bem menos eficazes que os liberais a maximizar essas mudanças a seu favor.

Enquanto o Partido Liberal definiu um lema eficaz — “Nós somos um Canadá forte” — e valores concretos — “humildade, ambição, união” –, os conservadores “construiram uma campanha com uma série de lemas em vez de um conjunto coerente de valores“, aponta o professor de gestão política, que define três erros concretos nesta estratégia de campanha.

Em primeiro lugar, o facto de terem insistido no lema “Axe the tax” (Corta o imposto, em tradução livre), que tinha como objetivo reverter a taxa de carbono imposta pelo governo de Trudeau. O problema é que, nos poucos dias como primeiro-ministro, em substituição de Trudeau, Mark Carney já tinha revertido esta medida, pelo que a promessa da campanha conservadora não tinha valor concreto.

Por outro lado, a estratégia conservadora para fazer frente a Trump também se mostrou muito menos promissora. Não que Pierre Poilievre não se tenha oposto ao Presidente norte-americano. Na verdade, o líder do Partido Conservador teve uma resposta muito semelhante à de Mark Carney às declarações de Donald Trump no dia das eleições sobre a anexação do Canadá. “Não se meta nas nossas eleições. As únicas pessoas que decidirão o futuro do Canadá são os canadianos quando votarem. NUNCA seremos o 51.º estado”, escreveu nas redes sociais.

Mas, nos seus comícios, muitos dos seus apoiantes insistiram em abanar bandeiras em que se lia “Make Canada Great Again” (Tornar o Canadá grande outra vez, em tradução livre), uma cópia do lema norte-americano que minou as tentativas de Poilievre de se distanciar de Donald Trump. Os especialistas apontam ainda que muitos eleitores podem ter encontrado demasiadas semelhantes nas posturas de Poilievre e Trump no que toca às questões sociais — a cultura “woke“, como ambos caracterizaram –, o que desencorajou o voto no Partido Conservador, dados os sentimentos anti-Trump que predominavam no país.

Por último, Stephen Azzi considera que os restantes lemas adotados pelos conservadores — como “Bring it home” (Vamos trazer [a vitória] para casa, em tradução livre) — eram demasiado “banais”. A eleição de Donald Trump e as ameaças que as suas medidas representam para a economia e soberania do Canadá esvaziaram os temas da campanha que os conservadores tinham vindo a preparar ao longo de 2024 — principalmente no que toca às questões dos impostos. Quando o foco se virou para a forma de lidar com Trump, Poilievre criticou o Presidente e mostrou-se pronto para o desafiar, mas não foi capaz de criar distância entre as suas políticas e as do movimento MAGA norte-americano.

“A campanha foi um desastre para os conservadores. Nunca um partido político canadiano desperdiçou uma vantagem de 25 pontos percentuais nas vésperas das eleições”, remata o professor canadiano. Poilievre não tentou mascarar o “desastre”: por volta da 1h (6h em Lisboa), concedeu a vitória aos liberais num discurso perante uma plateia de conservadores desmoralizados, em que assumiu que tinham aprendido “duras lições”. Classificando os resultados provisórios a essa hora como “um empate virtual”, prometeu responsabilizar o governo, mas o alvo a abater foi outro, já que prometeu trabalhar em conjunto com o novo executivo para fazer frente “às ameaças irresponsáveis do Presidente Trump”.

A queda dos pequenos partidos e uma corrida renhida entre liberais e conservadores

A maior surpresa da noite terá sido, para a maior parte dos canadianos, a derrota do Partido Conservador. Ainda assim, os conservadores permanecem o maior partido da oposição e conseguiram aumentar o número de lugares no parlamento, de 120 para 144. O professor Aaron Ettinger aponta um padrão de crescimento conservador em alguns círculos eleitorais importantes, que Pierre Poilievre justificou no seu discurso com uma angariação de novos eleitores, principalmente entre as camadas mais jovens.

Contudo, os partidos mais pequenos não podem dizer o mesmo. O Bloc Québécois viu o seu grupo parlamentar reduzido de 33 para 23 deputados e perdeu vários lugares na região do Québec, onde é o partido preponderante. A queda do Novo Partido Democrático (NDP) foi ainda mais acentuada: passou de 24 para sete, o que levou o líder Jagmeet Singh a apresentar a demissão.

Os especialistas ouvidos pelo Observador argumentam que é demasiado cedo para retirar conclusões aprofundadas. “Foi uma noite muito longa para os eleitores canadianos. Os resultados foram lentos e a contagem continuou noite dentro”, destaca o professor Aaron Ettinger, explicando que isso acontece pois as eleições federais são realizadas exclusivamente em papel e contadas manualmente — o que também o caso em Portugal, mas num universo de eleitores bastante mais reduzido.

No entanto, as primeiras projeções da noite já deixavam suficientemente clara uma mudança nos padrões de voto. “Apoiantes destes partidos estacionaram os seus votos nos partidos Liberal e Conservador“, aponta Ettinger. “Acabámos com algo que é incomum no Canadá: uma eleição de dois partidos, que parece mais norte-americana do que canadiana. Isto revelou comportamentos eleitorais invulgares que vão manter os analistas ocupados durante muito tempo”, elabora.

O facto de os dois maiores partidos terem concentrado as eleições num único tema — a resistência à ameaça de Donald Trump — pode ter contribuído para esta polarização. Se há uma “questão existencial à soberania e prosperidade do Canadá”, como define o professor, os eleitores podem virar-se para partidos com maior possibilidade de governar com uma maioria — uma hipótese que também ajuda a explicar o crescimento do Partido Liberal.

Ainda assim, os especialistas destacam que a corrida entre os dois maiores partidos se revelou extremamente renhida, o que levou, aliás, a que muitas das projeções dos resultados tenham previsto a vitória liberal, mas não tenham adiantado se seria suficiente para um governo de maioria ou não.

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