observador.pt - 29 abr. 22:23
O combustível para os geradores, os turnos contínuos e as voltas nas programações: como as rádios funcionaram e resistiram durante o apagão
O combustível para os geradores, os turnos contínuos e as voltas nas programações: como as rádios funcionaram e resistiram durante o apagão
Sem luz, "a rádio foi a única que sobreviveu". Diretores da Antena 1, Observador, Renascença e TSF recordam o dia em que a rádio foi protagonista e lamentam oportunidade perdida da Proteção Civil.
Quando tudo falhou, resistiram as rádios. Num dia de apagão geral que afetou Portugal e outros países europeus, durante horas de incerteza, foram as rádios — nacionais, regionais e locais — que, sem depender da rede elétrica, assumiram o papel de informar a população, provando o valor que podem ter em situações de crise. Quem não ouvia rádio voltou a fazê-lo e houve mesmo corrida às lojas para comprar aparelhos a pilhas.
Maria Antónia, 60 anos, precisou de ir a quatro espaços comerciais diferentes até ter sorte. “Foi um vizinho que me deu a dica: ‘olhe que ali ainda tinha’”. Um rádio vulgar custou-lhe 16 euros numa loja de conveniência no centro de Lisboa. “Funcionou perfeitamente”, conta ao Observador, lembrando como se desfizera de um antigo. “Não apanhava muito bem e na altura os meus filhos disseram-me que eu era anacrónica por não usar o telemóvel para ouvir rádio. Ninguém se lembra que há alturas em que o telemóvel não funciona”, diz entre risos. Felizmente, ainda tinha a “cábula” em papel com as frequências de todas as rádios. “Fui lá consultar, sintonizei imediatamente na TSF, sabia que era uma fonte segura para ouvir. Ainda não havia Rádio Observador quando eu tinha este rádio”, graceja.
Esta segunda-feira, quando nada mais respondia, as principais rádios de informação não ficaram às escuras e mantiveram o país informado, todas com emissões especiais durante várias horas. “Foi um dia importante para percebermos a importância das rádios nas nossas vidas”, diz Nuno Galopim, diretor da Antena 1. No caso desta, da Rádio Renascença e da Rádio Observador a emissão foi contínua graças a geradores próprios. Já no caso da TSF, “houve ali um momento em que ficámos uns segundos sem emissão”, admite Nuno Domingues, diretor de informação da rádio do grupo Global Media. Localizada num edifício “suportado por um grupo de geradores”, a energia foi abaixo e retomou segundos depois, para alívio da equipa que fazia o Fórum TSF, programa que conta com a participação de ouvintes e convidados que entram em direto por telefone. E durante alguns minutos o debate ainda continuou, com a rede móvel ainda funcional. “Os cinco minutos iniciais foram um bocadinho esquisitos no sentido em que as pessoas continuavam a conseguir ligar, o programa continuou. Só ao fim de cinco minutos é que percebemos que estava menos gente a ouvir.”
De forma mais ou menos célere, as principais rádios de informação portuguesas responderam à urgência e cancelaram os programas previstos, com alterações na grelha que refletiam como prioridade a informação para uma população praticamente desprovida de outra forma de comunicação. “Focámos-nos em estar atentos e a responder àquilo que era o mais urgente: dar informação e sobretudo informações úteis aos cidadãos”, frisa Galopim. “Tínhamos de responder a várias perguntas e algumas delas eram básicas. O que é que aconteceu? Depois, porque é que isto aconteceu? Nunca tivemos resposta para essa pergunta”, afirma Nuno Domingues, que releva a importância das reportagens na rua, essenciais “para perceber como é que a população está a reagir e quais são os principais problemas”. “Não há caixas multibanco, não há metro, os serviços de saúde estão todos a entrar em modo de contingência. Essa informação foi-nos toda dada por reportagens que estavam na rua, em Lisboa, no Porto e em outras cidades do país. Essas foram respostas que nos foram dadas na rua”, aponta o responsável da TSF.
Essa informação útil — desde o que fazer com a comida no frigorífico até ao cuidado na circulação rodoviária — chegou a muitos pela voz de locutores e jornalistas. Coisas práticas como “não começar a abrir e fechar a porta do frigorífico em casa muitas vezes porque isso é estar a perder energia no frigorífico”, ou “circular com mais cautela, mais devagar, mais atenção, porque não há semáforos”.
Embora a rádio seja um dos meios mais resilientes em situações de apagão, por poder operar com recurso a geradores, a emissão contínua não está totalmente garantida. A manutenção do sinal depende da autonomia dos equipamentos, que requerem combustível e manutenção regular. Em casos de falhas prolongadas na rede elétrica, a escassez de combustível ou dificuldades logísticas podem comprometer a capacidade das estações de se manterem no ar. Por isso, mesmo sendo uma alternativa robusta, a rádio também enfrenta limites operacionais em emergências prolongadas. Em alguns casos, foram necessária alterações para garantir a continuidade da emissão e prevenir o pior no mundo radiofónico: o silêncio. Na Renascença, por exemplo, a emissão que habitualmente acontece a partir do Porto até às 15h passou para a capital a partir do meio-dia. “Tivemos de passar a emissão para Lisboa, onde temos geradores. Foi uma medida preventiva”, explica Pedro Leal ao Observador, notando que os estúdios do grupo Renascença no Porto têm apenas UPS — uma espécie de bateria que serve para proteger o sistema de cortes de energia — ao passo que nos estúdios na Buraca, na capital, o grupo que inclui também as rádios RFM e a Mega Hits dispõe de geradores e “depósitos grandes de gasóleo” para os alimentar. O diretor de informação da Rádio Renascença diz que foi utilizado “um terço da capacidade”. “Podíamos continuar pelo menos mais um dia e meio com geradores”, estima.
No caso da Rádio Observador, cuja emissão decorreu de forma ininterrupta, o desafio também passou por acautelar combustível para um apagão cuja duração não era conhecida. “No arranque da emissão, chegámos a temer só ter energia para umas cinco horas”, diz Pedro Jorge Castro, diretor-adjunto. “Todos os postos de abastecimento começaram a fechar e a deixar de vender combustível, pelo que tivemos de ir a Aveiras para conseguir 140 litros de gasóleo e respirar de alívio”.
Nuno Galopim garante que ao final da tarde desta segunda-feira a estação pública de rádio ainda dispunha de “várias horas de autonomia, não só nos geradores em Lisboa, mas também do Porto e junto dos próprios emissores”, mas “estava a ser acautelado o reabastecimento se houvesse necessidade”. No caso da Antena 1, o apagão também nunca interrompeu a emissão. “Nunca foi abaixo porque os sistemas de backup com gerador funcionaram automaticamente e temos mais do que um sistema, precisamente para haver aí uma redundância. Tivemos essa defesa”, explica o responsável. Ao contrário da emissão televisiva, a emissão da rádio pública “não sofreu nenhuma quebra” e a partir das 16h, todas as antenas do grupo RDP — Antena 1, 2, 3, África, Internacional, Antena 1 Madeira e Antena 1 Açores – estavam em emissão em simultâneo. A estação pública também fez gestão de recursos humanos, com pessoas dispensadas para não sobrecarregar os consumos de energia dentro do edifício. “Tudo o que transcendesse a emissão especial foi adiado para os dias seguintes”, resume Galopim.
Todos os diretores sublinham o esforço dos seus profissionais para dar resposta a uma “situação extraordinária”. “Muita gente da equipa ficou a trabalhar para lá das suas horas e ofereceu-se para vir trabalhar apesar de estar de folga, dada a importância do acontecimento”, diz Pedro Jorge Castro. Também Nuno Galopim nota como tentava, sem sucesso, telefonar a jornalistas para “garantir a noite e a madrugada, mas estava com dificuldade em telefonar às pessoas para ter a certeza de que estariam cá”. “O certo é que toda a gente apareceu, toda a gente reagiu”, salienta.
Sem números concretos, “terá havido um aumento invulgar de consumos de rádio”Se para muitos a rádio é um fiel companheiro, outros sem hábitos de escuta deste meio de comunicação fizeram-no esta segunda-feira. Aviva, por exemplo, foi a casa da sogra pedir emprestado um rádio a pilhas, que manteve ligado até por volta das 21h. “Foi quando decidimos regressar à rua porque ouvimos que já tinham reposto [a luz] em Gaia e que não iria demorar muito mais”, recorda. Já Francisco, que só recorre à rádio no carro e “caso o adaptador do telemóvel falhe”, tem o meio “presente em mente para situações de emergência”. “Desde o terramoto do ano passado que pus mais a jeito e com pilhas a funcionar”, relata ao Observador. Ao final do dia ligou o aparelho que comprou no ano passado, quando decidiu que queria ter um “kit de emergência”. “Assim que a liguei, deixei ligada até a luz voltar, aí pelas 20h40 aqui em Alhandra”.
Quando a Internet voltou a iluminar o país, as redes sociais, do Instagram e Tiktok, deram a entender uma realidade alargada e uma avalanche de aparelhos de rádio, velhos novos, todos eles a pilhas, inundaram os feeds. Mas, pese embora uma perceção generalizada, não é possível medir se houve um aumento no consumo de rádio esta segunda-feira.
“Não temos uma medição de precisão dos consumos de rádio ao invés do que acontece com os consumos digitais, detalhadíssimos, ou de televisão”, explica Nuno Galopim. Ao contrário do acontece no plano digital ou na televisão, em que é possível medir ao minuto os comportamentos das audiências, só é possível medir em detalhe a rádio que ouvimos através das plataformas digitais. “Aí temos uma leitura detalhada dos consumos, diretos e diferidos. A emissão hertziana não está ligada a máquinas. Os aparelhos de quem está nos carros, os auto-rádios que muita gente tem, não estão de forma nenhuma conectados a nada que permita fazer uma medição precisa. Daí essa dificuldade”, assume.
Ainda assim, o diretor da Antena 1 crê que “terá havido um aumento invulgar de consumos de rádio”. Pedro Leal, da Renascença, é mais comedido ao referir-se à “quantidade de mensagens” recebidas pelo órgão de comunicação social. “Temos de ser honestos: a gente que gosta de nós telefona. Vale o que vale. Se são aqueles que já nos ouvem ou se são outros, não posso dizer com honestidade que aumentou. Mas foi um dia importante para percebermos a importância das rádios nas nossas vidas.”
Da TSF, Domingues também refere que “vários ouvintes fizeram chegar, através de e-mails e mensagens nas redes sociais, que a rádio foi a companhia”. “Alguns referem à TSF, outros referem às outras rádios, mas todos referem que a rádio foi o único que sobreviveu. As pessoas disseram-nos que sim, a rádio salvou-nos. A rádio foi a companhia que nos manteve ligada, que nos deu informações, que nos sossegou, que nos desassossegou, não interessa. Mas que fez aquilo que tinha de fazer”, nota o diretor de informação da TSF.
Galopim reitera a infalibidade do meio. “Ficámos com a consciência de que este continua a ser um veículo fundamental de ligação e de informação quando os outros falham. É-o também quando os outros não falham, atenção, é assim sempre. Mas sobretudo quando os outros falham, este não falha.”
Críticas à Proteção Civil: “Hoje o ministro diz-nos que o SMS foi enviado e que por problemas de rede não seguiu. Podia ter falado com as rádios”Já esta terça-feira, não faltaram críticas à Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), que enviou mensagens SMS para informar a população sobre o restabelecimento gradual da energia elétrica ao final da tarde de segunda-feira, mas que, em virtude de não existir rede, não foram recebidas por grande parte dos cidadãos.
“Nenhuma fonte oficial estava a conseguir cumprir esse trabalho com a mesma eficácia que nós”, começa por dizer Nuno Domingues, da TSF, que lamenta a falta de coordenação do organismo público com as rádios. “As informações úteis que estávamos a dar na rádio, estavam também a ser transmitidas na internet, mas ninguém, nenhuma fonte oficial estava a conseguir cumprir esse trabalho com a mesma eficácia que nós. Porque as pessoas, quando iam à procura de informação, não iam à procura da página do Governo, nem da Proteção Civil, iam à procura dos sítios onde vão buscar habitualmente a informação. Em termos de planos de Proteção Civil, mesmo que eles estejam empenhados, julgo que ninguém falou com as rádios para definir também qual é o papel que devem ter.”
Num cenário onde redes móveis, internet e televisão falham, há quem questione se a Proteção Civil não está a desperdiçar uma ferramenta de alcance massivo, com capacidade de operar de forma autónoma. Diretores de informação das principais rádios questionam a falta de coordenação que, no caso da TSF, levou a uma situação inusitada: a entrada de um agente num estúdio em direto com ordens para a evacuação do edifício. “A determinada altura uma das pessoas da equipa que estava na redação levou-me para dentro do estúdio um agente da PSP. O agente estava a tentar convencer-me, eu estava no ar, em direto, mas durante um som estive a falar com ele ele estava-me a tentar explicar que só podiam ficar no edifício as pessoas essenciais. Disse-lhe que todas as pessoas da rádio eram essenciais”, recorda. O jornalista e diretor relata que explicou a importância da troca de turnos e como o agente acabou por ceder. “Disse-lhe: não sei o que quer fazer, mas estou a cumprir um serviço, vou informar as pessoas. E o senhor está a tentar tirar as pessoas que estão aqui a ajudar a cumprir esse serviço. Depois ele lá aceitou e foi deixando entrar as pessoas. Às vezes nem as próprias autoridades têm noção da mensagem que estão a tentar passar”, lamenta. “Percebo que têm uma função a cumprir, mas, basicamente, nós éramos, naquele momento, as únicas pessoas que estavam a conseguir passar mensagens à população que ainda conseguia ouvir essas mensagens”, aponta.
O diretor de informação da TSF nota como “os Estados Unidos interrompem, automaticamente, as emissões de televisão e de rádio quando há emergências civis”. “Nos tornados, nos incêndios, nas inundações ou outras situações. Nós cá, isto está previsto na lei, mas nunca foi falado com os operadores”, critica. “Não temos de estar na dependência de governos ou de autoridades públicas em todas as situações, mas temos uma concessão do Estado para cumprir uma determinada tarefa. Se não nos dão ferramentas para cumprir essa tarefa, naquilo que somos mais importantes para cumprir essa concessão, num momento de emergência, às vezes podemos falhar por não haver essa coordenação”.
“A Proteção Civil não liga à rádio, não tem noção. Nos EUA, a Proteção Civil tem canais de frequência de rádio para quando quer emitir”, diz também Pedro Leal, da Renascença, que concorda que “a perceção sobre o poder da rádio é mal avaliada”. “Em Portugal não havia em rádios informativas, no caso de a proteção civil querer veicular uma informação, nós recebermos, avaliar e poder por no ar. Esse tipo de uso não existe. Hoje o ministro diz-nos que o SMS foi enviado e que por problemas de rede não seguiu. Podia ter falado com as rádios. A Proteção Civil podia ter falado connosco e teríamos percebido o que podíamos fazer se quisessem transmitir alguma coisa”, atira. “As pessoas não dão valor à rádio. No conjunto global de rádios contactamos com 6 a 7 milhões de pessoas. A determinadas horas tem muito mais gente do que muitos canais de televisão. O poder da rádio é imenso. Acho que o conjunto das pessoas não tem a perceção do poder da rádio.”
Nuno Galopim, da Antena 1, considera que a coordenação com a Proteção Civil é uma questão que “tem de ser melhor conversada”. “Reparámos que houve uma dificuldade gigante de comunicação, temos de trabalhar nesse sentido”, diz, alegando que “a rádio é aqui apenas parte do processo” e alargando a conversa para “ todos os grupos de média nas suas várias valências”. Já o diretor da Rádio Observador, Pedro Jorge Castro, refere que “a Proteção Civil deve ter noção da importância da rádio num momento destes e facilitar o mais possível o acesso regular à informação. Não é preciso nenhum plano coordenado, mas é preciso terem noção disso”.
O Observador contactou o gabinete de imprensa da Proteção Civil no sentido de questionar porque motivo a rádio não foi incluída no protocolo de comunicação de emergência do organismo público no caso que contemplava uma falha generalizada de eletricidade. Também questionou se existe um plano específico para situações de apagão onde a rádio é mobilizada como canal prioritário, se já foi ponderada alguma parceria com estações de rádio para situações de emergência ou até mesmo se foi considerada a hipótese da utilização de uma frequência não ocupada para comunicar ao país. Nenhuma das perguntas foi respondida até à data de publicação deste artigo.
Em declarações à Rádio Observador na manhã desta terça-feira, o ministro das infraestruturas António Leitão Amaro disse que foram usados “todos os canais disponíveis”. “Mal tivemos a primeira informação fiável do que podia estar em causa, pelo meio-dia, o Governo comunicou através do ministro da Presidência com as rádios, e cerca de meia hora depois também com as televisões”. E continuou: “O que se recomendava, perante o sistema que temos hoje, era usar todos os meios disponíveis: a comunicação social, nomeadamente a rádio, as redes sociais e o canal da Proteção Civil — foram todos os canais ativados e foram-no nas primeiras horas, não poderíamos multiplicar SMS na Proteção Civil. Fizemos o primeiro envio a meio da tarde conscientes de que podia haver problemas nas redes”.
Entretanto, numa conferência de imprensa na tarde de terça-feira em Lisboa, o secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos, defendeu que “a Proteção Civil, sob orientação do Governo, deveria ter recorrido à rádio, com comunicações de hora em hora, para dar novas informações sobre o caso”, segundo a agência Lusa.