observador.pt - 29 abr. 22:09
Como um "choque de frequência" em Espanha apagou a produção, contaminou a rede elétrica e deitou tudo abaixo em 5 minutos. Dez perguntas
Como um "choque de frequência" em Espanha apagou a produção, contaminou a rede elétrica e deitou tudo abaixo em 5 minutos. Dez perguntas
Um "choque de frequência" elétrica fez a rede colapsar, arrastando o sistema espanhol e português em poucos minutos. O apagão, as possíveis causas, as respostas e as consequências em 10 respostas.
Mais de um dia depois do evento que tornou Portugal e Espanha numa ilha às escuras isolada da Europa, já se vai sabendo o que aconteceu e como aconteceu. Mas não se sabe porque aconteceu e se poderá voltar a acontecer.
Enquanto se aguardam os resultados das auditorias internacionais, comissões independentes e até de uma mais prolongada comissão de inquérito (anunciada em Espanha), o Observador falou com alguns especialistas para procurar explicar o que esteve na origem deste evento inédito na Península Ibérica e muito raro na Europa, para perceber qual a responsabilidade do fecho do carvão e das importações de Espanha e o que devemos fazer para evitar, ou minimizar, o risco de voltar a acontecer.
O que fez cair a rede elétrica às 11h33 de segunda-feira (hora de Portugal)Podemos apontar duas causas sequenciais que afetaram a rede de muito alta tensão (rede de transporte que alimenta a distribuição aos clientes) em Espanha. Uma está identificada e foi a queda abrupta (em cinco segundos) de 15 gigawatts de produção de energia que estava a ligada à rede (e que abastecia cerca de 60% do consumo àquela hora). A produção caiu em 5 segundos e esta queda alastrou como um dominó a todo o sistema ibérico em cerca de cinco minutos, admite ao Observador Artur Trindade. O ex-secretário de Estado da Energia e que foi presidente das bolsas elétricas (OMIP e OMIE) não tem dúvidas que na origem desta queda está um problema na rede. Terá havido uma perturbação (desfibrilação) na rede de transporte “que fez sair os 15 gigawatts (GW) e isso propagou-se a todo o sistema.
Porque é que a queda de 15 GW de produção em Espanha afetou todo o sistema elétrico?Ainda segundo Artur Trindade, a dimensão da produção que saltou da rede foi “uma perturbação gigantesca e instantânea que se propagou a todo o sistema”. Isto porque a instabilidade ao nível de tensão e frequência — a rede opera a 50 hertz e quando há desvios na frequência para baixo ou para cima dessa banda destabiliza o seu funcionamento — fez disparar todas as centrais e subestações que estavam ligadas e sincronizadas, arrastando a produção. Mas o consumo manteve-se. E quando não existe um match (casamento) perfeito entre a oferta e a procura, há apagões.
Como é que esta falha em Espanha chegou tão depressa a Portugal?Porque os sistemas elétricos dos dois países estão profundamente integrados. Não só em termos físicos com interligações, mas em também em termos técnicos e de mercado, com o Mibel (mercado ibérico de eletricidade) que funciona há cerca de 20 anos. Prova dessa integração é que Portugal estava a consumir eletricidade importada de Espanha para quase um terço da sua procura àquela hora que era de 9 Gigawatts (GW), mais de metade de toda a produção que saiu do sistema ibérico. O foco na importação foi sublinhado pelo administrador da REN, João Conceição, nas primeiras explicações que deu sobre o evento, sublinhando que Portugal estava a comprar porque a energia estava à data mais barata em Espanha do que a produzida internamente.
Portugal estaria mais protegido se não estivesse a importar?A interligação permite um fluxo bidirecional de energia em função de condições técnicas, de mercado ou até de segurança do sistema. No momento em que o evento ocorreu em Espanha, Portugal estava a receber, mas os especialistas ouvidos pelo Observador desvalorizam a relevância da direção do fluxo de energia. Para António Vidigal, ex-presidente da EDP Inovação e consultor, “ainda que Portugal não estivesse a importar de Espanha, seríamos afetados porque temos uma grande capacidade de interligação com o sistema espanhol”.
Segundo este especialista, o nível de integração nas rede de transporte de Portugal está ao nível do de outras regiões espanholas. Artur Trindade concorda e acrescenta. “Se estivéssemos exportadores, com um choque de frequência tão grande, teríamos ido abaixo pela simples razão de estarmos muito interligados. Não foi um problema de potência ou de produção. O que provocou o colapso nas centrais foi a rede”. E foi a rede que provocou o colapso de todo o sistema.
Na mesma linha, o ex-diretor da EDP, José Allen Lima, defende numa publicação no LinkedIn: “Mesmo com saldo zero na importação (estávamos a importar, o que pode agravar a situação do nosso lado) a probabilidade de irmos conjuntamente ao fundo seria muito elevada (estamos no mesmo ‘navio’)”.
Haveria alguma forma de Portugal se proteger do contágio espanhol?O ex-secretário de Estado da Energia considera que a única defesa que poderia existir seria uma interligação menor com Espanha, como é o caso de França, que conseguiu desligar rapidamente a ligação a Espanha e conter o problema no seu território e repor rapidamente o fornecimento com a ajuda do seu próprio sistema a norte. Portugal só teria conseguido separar (deslastrar) as redes se tivesse um mercado maior e a interligação tivesse menos relevância.
Artur Trindade dá este exemplo. Se o incidente tivesse ocorrido em Portugal, “é provável que o contágio a Espanha tivesse sido mais limitado porque o sistema deles é muito maior e até conseguiria eventualmente ajudar-nos a repor mais rapidamente”. Uma interligação com maior relevância face à dimensão do nosso sistema torna muito difícil cortar essa conexão com a rede espanhola em tempo útil para salvaguardar a “algumas ilhas da nossa rede a partir das quais pudéssemos repor o sistema”.
Mais do que interligação, é a assimetria entre a dimensão dos dois mercados que faz a diferença. O facto de Espanha ser cinco vezes maior do que Portugal deixa-nos mais expostos, “mais vulneráveis à contaminação da rede”.
A interligação pode ser um problema?Neste caso específico teve o seu contributo, mas todos defendem que a interligação com Espanha é fundamental para a segurança de abastecimento elétrico em Portugal e para uma gestão eficiente do ponto de vista técnico e económico. “A interligação é positiva porque aumenta a cooperação e ajuda-nos a resolver problemas”, afirma Artur Trindade. Apesar de, acrescenta, também aumentar a interdependência, “o que abre a porta aos tais fenómenos de contaminação de rede”.
José Allen Lima, consultor que foi diretor da EDP e administrador da REN, também é categórico em afirmar que temos “uma vantagem na interligação”. É como “estar encostado a um barco cinco vezes maior”. Desde do início dos anos de 1960 que Portugal funciona em rede com Espanha e tem “sido uma vantagem enorme em termos de segurança de abastecimento. Aliás toda a Europa tem algum grau de integração entre os sistemas nacionais. Mas se houver um azar grande de um dos lados, o barco pode afundar se as barreiras criadas para evitar a propagação não funcionarem”. Como aconteceu esta segunda-feira.
Mais do que a interligação, José Allen Lima considera que o país tem “um problema estrutural de falta de capacidade firme para se sustentar sem o apoio de Espanha — um país que tem o mesmo regime atmosférico que Portugal — , o que tem sido identificado em relatórios de monitorização da segurança recentes”. E depois há um problema operacional ou de resposta dinâmica que é a gestão do dia a dia feita pela REN.
O administrador da REN, João Conceição, é categórico: o facto do sistema estar bastante interligado com Espanha é “uma vantagem não só em termos económicos (energia mais barata), mas também em termos de segurança de abastecimento. Se Portugal fosse uma ilha não poderia recorrer a ninguém”. Mas ontem foi isso que aconteceu, depois dos dois sistemas de transportes se desconectarem e estarem a operar ainda hoje isolados.
Falta de inércia na rede. Qual foi o papel das renováveis no apagão?Pelo perfil de produção que estava a abastecer o sistema antes da falha maciça — segundo dados da REE (Rede Eletrica Espanhola) citados por António Vidigal numa publicação no Linkedin — tudo indica que o grande volume de energia fotovoltaica possa ter tido algum papel.
Esta forma de energia estava a gerar 18.283 megawatts e, em conjunto com a eólica, representava cerca de 80% da produção, o que incluía os mais de 4 megawatts que estavam a ser exportados para Portugal e França. Depois do incidente, verificou-se a tal queda abrupta da produção, muito centrada nas centrais fotovoltaicas e nas centrais nucleares que se desligaram automaticamente por razões de segurança.
De acordo com este especialista, a rede espanhola (e portuguesa) apresentava um fraco nível de inércia natural, o que pode ser explicado pelo facto de as energias renováveis se ligarem à rede através de inversores do tipo grid following. Ao contrário dos geradores tradicionais de ligação da energia convencional à rede, que permitem energia cinética que ajuda a estabilizar pequenas oscilações de frequência, estes inversores não fornecem inércia e são muito sensíveis a oscilações de tensão.
“A eólica e a solar estão ligadas ao sistema por inversores, em grande parte do tipo “grid following” , que não fornecem inércia e são muito sensíveis a oscilações de tensão. Tem-se verificado que quando os inversores “grid following” representam mais de 75% da geração os sistemas se tornam assintoticamente incontroláveis”.
Artur Trindade também refere que muitas renováveis correspondem a “muita energia com pouco inércia torna a rede mais suscetível a pequenas perturbações de frequência e tensão”. Ou seja, quando há menos energia cinética, há menos capacidade de reação”. Mas sublinha que existem formas de melhorar a capacidade da rede, investindo mais na sua inteligência (digitalização essencial para gerir um sistema de produção descentralizado) e nos serviços de sistema. Também se pode apostar noutros fornecedores de inércia, como baterias ou centrais de bombagem, para ajudar a lidar com pequenas perturbações.
João Conceição admite como “plausível” a ligação entre a injeção de energia renovável no sistema e o apagão, mas diz que podem existir outras razões. “As renováveis são uma fonte de energia segura, mas têm caraterísticas de volatilidade que tem de ser acomodadas uma abordagem de todo o sistema elétrico para mitigar essa volatilidade”.
Para já, a Rede Elétrica espanhola descartou o cenário de ataque informático e de um evento meteorológico. A imprensa espanhola avança que o operador já tinha alertado em fevereiro para riscos de desconexões sucessivas de centrais no sudoeste do país devido ao recurso massivo a energia fotovoltaica, combinado com o fecho de algumas unidades nucleares,
José Allen Lima defende que Portugal precisa de ter potência firme para aguentar os consumos nacionais, perante a expansão da energia solar e eólica no mix produtivo. Não tanto por causa desta situação, mas devido à intermitência da produção renovável, em particular quando há anos secos e sem produção hidroelétrica. Essa potência firme pode passar por centrais térmicas — nas quais ninguém quer investir — ou por baterias. Mas, avisa, não adianta ter centrais térmicas paradas que demoram muito tempo a arrancar.
As centrais a carvão teriam a feito a diferença?Não, não e não, garantem todos. “Se as centrais a carvão não estivessem descomissionadas naquele momento, não estariam a produzir porque os preços em Espanha estavam demasiado baixos. E desligariam automaticamente como outras centrais térmicas”, diz o ex-secretário de Estado da Energia. Para as ligar e retomar produção teríamos de esperar até 40 horas, acrescenta. Logo, conclui, não iriam resolver o problema porque “já não estamos num sistema em que o carvão funciona de forma mais permanente no qual a central estaria quente e poderia retomar mais rapidamente”.
As centrais de Sines e do Pego estão desativadas desde 2022. E mesmo considerando que o fecho do Pego em 2022 foi “aventureiro”, porque Portugal ainda não tinha disponível o empreendimento do Alto Tâmega e estávamos num ano seco, José Allen Lima reconhece que as “térmicas paradas e frias demoram a arrancar”.
Em declarações à Rádio Observador, João Conceição da REN, explica que mesmo que as centrais a carvão estivessem a operar, iriam provavelmente desligar-se como as outras por causa dos mecanismos de proteção. E voltar a colocar um grupo de carvão a funcionar quando esteve parado leva tipicamente mais de 8 horas, “o que significa que centrais a carvão não teriam sido solução para o restabelecimento se não estivessem a funcionar”.
Quais foram as respostas? São suficientes?Sem a interligação com Espanha, nem com mais nenhum país, Portugal ativou o plano de recuperação do sistema elétrico previsto nos relatórios da segurança de abastecimento cujos cenários de stress no sistema elétrico nunca anteciparam nada de tão radical como o que aconteceu, sobretudo na velocidade a que se propagou.
Esse plano passou por rearrancar as duas centrais que prestam o serviço de black start. Uma delas é Castelo de Bode, a hídrica do Ribatejo que tem o papel histórico de relançar o sistema em casos de apagão. A outra é a central térmica (gás natural) da Tapada do Outeiro em Gondomar. O que distingue estas unidades das outras é o disporem de geradores com potência suficiente para permitir o arranque crítico de equipamentos que exigem um elevado consumo, como por exemplo, a abertura das comportas de uma barragem.
Foi este sistema que permitiu arrancar o sistema, sem ajuda da rede e sem a ajuda de Espanha, na tarde de segunda-feira (ao fim de algumas tentativas frustradas porque era preciso alinhar totalmente a oferta com o consumo). E antes desta evento só tinham sido feitas simulações para avaliar a capacidade resposta da solução. O processo funcionou, mas não foi suficientemente rápido, na avaliação do primeiro-ministro. Luís Montenegro anunciou que o país vai ter mais duas centrais com este serviço — Baixo Sabor e Alqueva — ainda que este reforço já estivesse previsto para 2026. E que vai ser renovado até 2030 o contrato com a Tapada do Outeiro para prestar o serviço. Destacou ainda que Portugal até recuperou mais rapidamente do que Espanha, apesar desta ter a ajuda das redes marroquina e francesa.
É uma evolução no sentido certo, mas não elimina o risco, apenas reforça a capacidade de resposta a apagões. A construção de uma interligação com Marrocos chegou a ser falada durante o primeiro Governo de António Costa, mas é uma decisão política que ultrapassa a vontade dos dois países. Espanha negociou a única interligação europeia com Marrocos, além de que está muito mais perto da costa marroquina do que Portugal.
Que lições se podem tirar?O ex-secretário de Estado, Artur Trindade, defende que há duas análises a fazer a este fenómeno. Do lado espanhol, é preciso perceber o que aconteceu e se houve falha humana ou do sistema. O ex-presidente do OMIP e OMIE lembra que houve dois episódios públicos dos dias anteriores que indiciavam os tais problemas na qualidade e fiabilidade da tensão na rede — uma delas afetou uma refinaria da Repsol. “O resultado desta investigação é muito importante para Portugal” porque este é o único vizinho com quem temos interligação e que é cinco vezes maior. A outra análise é perceber se do lado da REN estamos preparados para lidar com uma menor qualidade da frequência da rede espanhola.
Allen Lima descreve o que aconteceu como um “cisne negro”, uma anormalidade tão difícil de prever que ainda ninguém arriscou a avançar uma causa provável. O consultor destaca a grande cautela da Rede Elétrica de Espanha (REE) que há uns anos estudou as oscilações de potência na rede e a necessidade de atenuar esse risco com equipamento. Mas destaca que em Portugal, o debate deve ser outro. É o de saber até onde “devemos confiar no socorro por importação de Espanha”.
Para António Vidigal, “Portugal e Espanha estão a abrir um novo território” porque neste momento têm mais renováveis no seu sistema do que outros países e essa realidade está a criar novos problemas, a par das vantagens que traz em termos de independência, preço e sustentabilidade.
As respostas vão chegar, mas não de imediato. Portugal anunciou uma comissão técnica independente para avaliar a resiliência do sistema e da resposta de outros serviços críticos, para além da auditoria que vai ser feita pelos operadores europeus, (neste caso pela associação que junta os operadores de sistema) e pela Comissão Europeia com recurso a peritos independentes). Estas duas auditorias estão previstas no quadro regulamentar europeu, Em Espanha haverá várias investigações do setor e do Governo, mas já houve alguns recados do Governo aos produtores.
Todos concordam que é preciso reforçar a capacidade das redes, com mais digitalização e mais sistemas de backup, nomeadamente com baterias. João Conceição admite mesmo que as centrais eólicas e solares tenham de ter associadas baterias para não desaparecerem repentinamente da rede. Outras soluções podem passar por permitir que os equipamentos renováveis instalados para consumo próprio em grandes unidades consumidoras possam funcionar para abastecer estas unidades sem a rede estar operacional. Atualmente, estão sincronizados com a frequência da rede elétrica e quando esta cai arrasta estes equipamentos consigo.
Mas o custo-benefício destas medidas tem de ser avaliado em função do risco de falhas na rede, na medida em que podem agravar os preços da eletricidade.