www.publico.ptpublico@publico.pt - 29 abr. 22:10

Anatomia de um “apagãolipse”

Anatomia de um “apagãolipse”

Não será todos os dias que se quer isto mas foi bom perceber o que é uma sociedade.

Comecei este texto no bloco de notas do telemóvel, numa fila da loja do chinês, e continuei-o no papel. Por ironia e maldade do destino, a minha defesa de tese é amanhã e, na altura que escrevo, pergunto-me se a data se irá manter.

Os últimos treinos não são no powerpoint ou com perguntas simuladas do Chatgpt, são a ler o documento que imprimi para ser mais um troféu que material de estudo. Os sons da casa não são da televisão, do microondas nem do meu computador, são os de um rádio a pilhas, objecto que não tenho a funcionar em casa há mais de uma década.

Saio à rua para ir buscar marcadores autocolantes parra assinalar páginas relevantes da tese. As ruas estão cheias de gente, num dia quente e agradável, onde o sol se encontra ligado em contraste com os semáforos. Os carros deslocam-se à cautela, e os peões guiados pelo hábito olham ainda para os semáforos de peões como se deles procurassem a resposta para atravessar. As expressões são de ânsia e curiosidade, de um mundo que mudou às 11h33 da manhã. Felizmente já tinha bebido o meu café, outros não tiveram essa sorte.

Na rua encontro a minha avó e fazemos, portanto, juntos a voltinha do bairro. No meu destino, a loja do chinês, onde a luz era garantida, agora reina a escuridão. Em vez de bugigangas baratas e artigos para safar as faltas na cozinha compram-se lanternas, velas e rádios. A palavra “esgotado” multiplica-se nas lojas que tiveram a coragem de se manter abertas.

Paro num café para a minha avó comer qualquer coisa. Pergunto-me: será que devemos manter o nome “café” a meio de um apagão? Efectivamente é das poucas coisas que já não se vende naquele local. As cervejas vão se vendendo enquanto estão frescas, os gelados enquanto estão inteiros.

As farmácias voltaram ao papel, pedindo um valor de sinal, dado que não têm acesso aos valores dos medicamentos. As pessoas actualizam-se mutuamente, falando do apagãolipse, de possíveis cenários. Estranhos cumprimentam-se, conhecem-se e ajudam-se. Existe uma compaixão pelo que todos sofremos.

Algures amanhã voltaremos às máquinas e a ter tudo como dantes. Negócios, conduta e condução não serão problemas a resolver. Eu talvez terei a minha defesa de tese com o meu power point. Todos teremos histórias para contar. Eventualmente passaremos esta questão à frente e faremos tudo como se nada tivéssemos a aprender disto.

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