magalhaes.afonso@newsplex.pt - 29 abr. 21:44
O Liberalismo é Bom se Deus Existir e for Liberal
O Liberalismo é Bom se Deus Existir e for Liberal
Menos Estado, menos paternalismo, mais liberdade individual, mais autonomia e maior sentido de auto-responsabilidade. Essas são condições mínimas para qualquer país que aspire a ser verdadeiramente moderno e democrático
“Acredito em Deus e nos mercados.” Kenneth Lay, presidente da Enron
Frases como “todo o imposto é roubo” ou “os ricos são os verdadeiros pobres, pois o Estado tira-lhes tudo” traduzem uma visão idealizada de um liberalismo imaculado, segundo o qual, se cada um agir exclusivamente no seu próprio interesse, emergirá, por uma espécie de alquimia moral, uma sociedade harmoniosa, justa e próspera, obedecendo a supostas leis naturais. (Em Portugal, as frases entre aspas até parecem verdadeiras… é ironia, claro.)
Nesta lógica, cada indivíduo, ao seguir o seu interesse, contribuiria — como por magia — para uma ordem social superior, orientada por uma “mão invisível” que é a ordem que se deve sobrepor a qualquer tipo de regulação. Para os liberais clássicos, no entanto, essa mão não era verdadeiramente invisível: pois esta mais não era que a providência divina e ou uma ordem moral anterior aos mercados.
Adam Smith, na sua obra Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, afirma que é o interesse próprio — e não a benevolência — que impulsiona o progresso económico e a inovação. O egoísmo de um talhante, ao procurar o seu lucro, acaba por beneficiar, involuntariamente, o cliente. Este é um dos grandes mitos do liberalismo — e um dos mais nocivos para a organização das sociedades humanas, salvo, claro, para os que controlam a tal mão invisível.
Friedrich Hayek, ao aplicar o conceito de liberdade à economia, defendia que esta funcionaria como “a maré alta que faz subir todos os iates”. Já John Kenneth Galbraith, mais crítico, comparava esta crença liberal à teoria do “cavalo e do pardal”: alimentamos o cavalo com aveia e alguma cairá pelo caminho para os pardais. Em ambos os casos, a convicção central é a mesma: dar mais aos ricos acabará por beneficiar todos — mas a que custo? E que tipo de sociedade se constrói com essa lógica?
O interesse próprio e a busca do lucro fazem parte da natureza humana, mas, no liberalismo, são elevados a princípios organizadores exclusivos do comportamento social. Esta crença tornou-se o fundamento normativo da doutrina liberal, corroendo dramaticamente a coesão social e deformando a própria compreensão da natureza humana.
Na prática, os egoístas mais hábeis tornam-se cada vez mais ricos e poderosos; os menos sagazes, cada vez mais pobres e marginalizados. As estratégias dos primeiros convertem-se em dogmas. Valores como solidariedade, compaixão, entreajuda e sentido comunitário são relegados ou convertidos em produtos transacionáveis.
A livre iniciativa — elemento fundamental da vida em sociedade —, quando absolutizada como princípio único de organização social, deu origem a um capitalismo amoral e predatório, à mercantilização da cultura e à erosão de conquistas civilizacionais. O mundo tornou-se uma megacorporação; os seres humanos, funcionários e consumidores; a realidade, uma encenação mediática.
O mito do “mercado livre” prometia conter a fórmula mágica da prosperidade, garantida pela sua autorregulação — um milagre assegurado pela “mão invisível”. Contudo, esta crença revelou-se uma fraude monumental: a autorregulação passou a justificar todas as disfunções como oportunidades de melhoria. O mercado foi idealizado como o “melhor dos mundos possíveis” — uma versão económica do otimismo de Pangloss.
É verdade que o mercado não estatizado se mostrou eficaz ao gerar uma maior riqueza material para um mais elevado número de pessoas. Porém, a mercantilização total alastrou-se a domínios que deveriam permanecer imunes: os sentimentos, a cultura, a educação, a cidadania, a saúde, a vida familiar e até a relação com a morte.
Comerciar, negociar, trocar: estas são práticas humanas essenciais. Mas a mundividência liberal, ao reduzir o humano à lógica do cálculo e da troca, empobreceu a própria ideia de humanidade.
Adam Smith, funcionário público, não apenas construiu uma teoria económica, mas propôs um novo paradigma político-filosófico. A hipertrofia desta visão — um mundo sem coerção, baseado na pura espontaneidade dos indivíduos — tornou-se uma utopia desligada da realidade social.
O respeito pela propriedade privada, pela livre iniciativa e pela liberdade política é, sem dúvida, um património civilizacional valioso. Mas o liberalismo moderno alienou esses princípios ao convertê-los em dogmas divorciados da sua dimensão comunitária e ética.
Frédéric Bastiat, economista francês do século XIX, encarna bem esta ingenuidade liberal. Crítico do socialismo estatizante — que, de facto, gerou novas formas de servidão —, opôs-lhe um remédio que, levado ao extremo, conduz a outros delírios: a tirania do mercado, o totalitarismo da concorrência.
Bastiat acreditava que, se cada um seguisse o seu próprio interesse, acabaria, mesmo sem querer, por beneficiar todos. As leis do mundo tenderiam, naturalmente, para a harmonia universal.
Vendo no Estado apenas o herdeiro do absolutismo monárquico, Bastiat ignorou que, sem um Estado justo — ou perante um Estado capturado pelos mais poderosos —, a liberdade torna-se privilégio dos mais fortes e dos mais egoístas.
As idealizações hiperliberais dos séculos XX e XXI — a sociedade sem Estado, baseada exclusivamente na propriedade privada e no interesse individual — já se esboçam nos escritos de Bastiat. Exemplos caricatos desta lógica são a preocupação do credor pela saúde do devedor ou a do senhorio pelo bem-estar do inquilino — não por compaixão, mas porque disso depende o seu rendimento. Esta visão simplista e utilitária das relações humanas está no cerne do liberalismo libertário.
Bastiat confunde a crítica legítima ao protecionismo abusivo com a recusa de proteger os mais frágeis. A sua defesa da liberdade acaba, inadvertidamente, por ser a defesa dos mais astutos, dos mais bem-sucedidos — e o abandono dos que mais precisam de justiça e equidade.
O capitalismo predatório do hiperliberalismo contemporâneo ignora deliberadamente a responsabilidade de reinvestir nas comunidades. Os direitos laborais, por exemplo, passam com frequência a ser vistos como privilégios indevidos; a regulação estatal, como obstáculo ao lucro; a vida social, como arena darwinista.
A incompreensão de Bastiat sobre o papel de um “bom Estado” ressoa em frases enganosas como: “O Estado é a grande ficção através da qual todos procuram viver à custa de todos os outros.”
Bastiat via a liberdade, a propriedade e a personalidade como direitos naturais concedidos por Deus. Adam Smith, embora não o diga de forma explícita, sugere que a “mão invisível” e a ordem espontânea do mercado implicam uma ordem moral natural ou divina. Sem essa âncora transcendente, que sentido faz hoje tratar esses princípios como dogmas absolutos?
A importância de Deus e/ou dessa ordem anterior nos alicerces do liberalismo clássico é inegável — e profundamente paradoxal. A ordem espontânea defendida por autores como Smith ou Bastiat pressupunha uma ideia de justiça natural e uma conceção providencial do mundo. Sem esse fundamento transcendente, a crença liberal na harmonia automática dos interesses individuais perde substância e torna-se uma construção ideológica frágil, voluntarista.
Como advertiram pensadores como Alasdair MacIntyre e Charles Taylor, uma sociedade que reduz a vida moral à livre escolha e a vida social à competição mercantil destrói a própria possibilidade de um bem comum partilhado. Sem Deus — ou, pelo menos, sem uma conceção robusta da natureza humana e da justiça —, o liberalismo converte-se numa distopia tão desumanizadora quanto os totalitarismos que procurou superar. O seu triunfo seria, como o do comunismo, o da negação da verdadeira humanidade.
Mas atenção: em realidades como a portuguesa — sociedades asfixiadas por um estatismo socialista, tenha ele ou não um “D” no fim da sigla —, onde até o partido “liberal” repele os próprios liberais, torna-se evidente que precisamos de umas boas doses de liberalismo. Ou seja, de menos Estado, menos paternalismo, mais liberdade individual, mais autonomia e maior sentido de auto-responsabilidade. Essas são condições mínimas para qualquer país que aspire a ser verdadeiramente moderno e democrático.