Observador - 30 abr. 00:10
A dor do mundo novo
A dor do mundo novo
O Covid, e a guerra, o declínio moral, a crise energética, os apagões... É difícil não concordar com a “dor do mundo” de alguns dos meus pacientes, ela também é a minha.
Passou-me pela cabeça hoje, enquanto fazia scrolling interminável pelas páginas dos jornais online e pelos fóruns à procura de informações sobre o apagão (a sua dimensão, zonas afectadas, possíveis causas) que estou cansada. Tinha recebido aqui na Alemanha há umas horas atrás uma mensagem dos meus pais em Portugal de que havia um apagão generalizado e que, por isso, não sabiam se estariam contactáveis nas próximas horas. Estranhei, visto que aqui estava tudo calmo, não havia nada nas notícias. Rapidamente, contudo, a gravidade da situação tornou-se clara quando me apercebi pela imprensa luso-espanhola de que a Península Ibérica estava, efetivamente, às escuras. A minha tendência, do domínio privado, para a catastrofização fez sentir-se. Uma calamidade, um flashback dos tempos do Covid, com o pandemónio geral, a incerteza, o medo… Como estará a minha família? O que vai acontecer a seguir? Quanto tempo será necessário para restabelecer a normalidade? Tudo perguntas com o mesmo carácter de tortura daquelas que nos deixam passar uma noite em claro. Mas a minha faceta profissional assumiu o controlo, dizendo-me que não devia desesperar, mas sim manter-me informada e agir de acordo com os desenvolvimentos.
Tive o luxo, ao contrário da maioria da população portuguesa, de poder acompanhar todos os comunicados e atualizações. Alguns destes consegui transmitir, aos soluços ou por SMS que às vezes eram entregues, aos meus pais, separados de mim por muitos quilómetros. Não que isto tenha sido grande ajuda: a informação e comunicação oficial foi parca e chegou atrasada, o que numa situação deste calibre só pode ser uma falha de julgamento ou desleixo. Não saber não é um pecado, mas é melhor comunicar isto abertamente do que deixar milhões de pessoas a tecer mil e uma fantasias. A incerteza é uma faca afiada.
O dejá vu é tão grande que não consigo ignorá-lo. Será que temos, como sociedade, de nos habituar a este novo mundo, cheio de estrepolias diárias? O que é facto é que vejo cada vez vejo mais doentes na consulta com o que os alemães chamam Weltschmerz, “dor do mundo”. A promessa do pós-guerra do século anterior esfuma-se no ar como fumo de um cigarro numa manha ventosa. Para trás fica a incerteza, o medo, as perguntas. O nosso mundo ocidental, na nossa “bolha” que se orgulhava do progresso, parece um pouco tímido agora.
Ainda me lembro do mundo aberto que vivi há mais de cinco anos, quando emigrei. A sensação, pelo menos na Europa, de não ter restrições, poder ver o mundo, estar conectada, em todo o lado ao mesmo tempo. Tudo a um “salto”, um clique de distância. Depois veio o Covid, e a guerra, o declínio moral, a crise energética, os apagões… É difícil não concordar com a “dor do mundo” de alguns dos meus pacientes, ela também é a minha. O mundo, efectivamente, mudou.
Não é costume ou popular falar assim como psiquiatra. Mas depois de um dia como o de hoje, acho que alguma autenticidade faz muito sentido. Falar da nossa fragilidade, como seres humanos, como sociedade, como mundo dentro de um Universo vasto é lembrar-se cada vez mais do que é importante. É, também, aperceber-se de que “novos normais” não têm de ser normais. Se me sinto abalada pelo que o mundo me atira à cara, não tenho de ser sempre a culpada, o mundo também o pode ser. A vida, com tudo aquilo que a faz valer a pena ser vivida, também pode ser muito difícil e exigir demais. As contradições são a parte mais difícil da experiência humana.
O alívio quando a energia começou a voltar a Portugal, pouco a pouco, foi sentido aqui na Alemanha, no lugar onde o meu coração apertado batia forte, de forma tão intensa como nos bairros portugueses em que se gritou à janela. Pude falar mais tempo com os meus pais, atualizá-los das notícias, tranquilizá-los. Por agora, foco-me neste momento. Aquilo que era dado adquirido e deixou de o ser por largas horas está de novo ao alcance da minha família. Sinto-me feliz. Os pensamentos e os receios podem esperar por amanhã, pelas explicações, desculpas e promessas que hão-de vir e satisfazer (ou não). Mas uma coisa é certa, quando vir os meus pais outra vez, vou abraçá-los com mais força. Se o amanhã é cada vez mais uma incógnita, não quero deixar escapar o dia de hoje.