publico@publico.pt - 29 abr. 23:49
“O Putin espirrou e a luz faltou”, ou a cultura popular na definição dos medos
“O Putin espirrou e a luz faltou”, ou a cultura popular na definição dos medos
Até poderemos chegar à conclusão de que foi, de facto, um ataque cibernético da Rússia. Mas, antes de alguma coisa estar apurada, já estava decidido quem era o responsável.
O “bode expiatório” é, possivelmente, dos tópicos mais consolidados na nossa cultura popular. Se não houver quem arque com o ónus, haverá sempre um “eles” indefinido, mas dito com o tom de que todos sabemos quem eles são. E, regra geral, quanto mais rebuscada for a justificação ou o agente, melhor; atreitos que somos a explicações do âmbito do milagre, enquanto coletivo, não temos muita capacidade crítica para nos afastarmos metodologicamente do mundo das teorias da conspiração.
De forma muito bem construída, ao limite do que a procura definia, fomos inundados por um sem número de produções de Hollywood centradas no fim do mundo, num qualquer cataclismo, seja ele militar ou natural, resultado de invasões de extraterrestres ou de ataques massivos de entidades malignas. A cinematografia americana, que bebemos nos momentos de lazer, nunca abandonou a demonização da Rússia/URSS que vinha da Guerra Fria.
Ao medo de um fim ecológico, alimentado pelos setores ditos mais progressistas, juntou-se o desejo de um fim teológico, difundido pelas Igrejas centradas no segundo advento de Cristo. Na junção de ambas as linhas, pouco da nossa sociedade fica de fora do inevitável contágio em que quer uns, quer outros alinham com toda a facilidade nas justificações maniqueístas vindas do horizonte das fake news.
Hoje, com três anos de guerra na Europa, com a instalação de narrativas a vários níveis sobre a Rússia e o seu líder, tudo o que correr menos bem será potencialmente causado pelo autocrata russo. E, com o apagão desta segunda-feira, tudo se passou como os manuais de cultura popular nos ensinam: rapidamente nasceram narrativas exageradas, com a Europa toda sem eletricidade, exceto a Hungria, seu aliado. Dando corpo, num clima de algum gozo, a memes, a imagens altamente criativas, a caricaturas que rapidamente se tornaram virais. A responsabilidade foi rapidamente normalizada: foi Putin ou, como alguém dizia na rua, e que a minha filha ouviu, “O Putin espirrou e a luz faltou” (e rima, e tudo!).
Eventualmente, até poderemos chegar à conclusão de que foi, de facto, um ataque cibernético da Rússia (temos historial suficiente para o colocar como hipótese). Mas, antes de alguma coisa estar apurada, já estava decidido quem era o responsável. É isto estranho? Não, nem caso raro, sendo a forma mais comum de definir responsabilidades: atirar as culpas para quem as encaixa enquanto alvo dos medos e das fobias.
Neste quadro de fobia coletiva, mesmo o que é falso torna-se verdadeiro
O mais importante é que, neste quadro de fobia coletiva, mesmo o que é falso torna-se verdadeiro. Seja pelo clima apocalíptico consolidado, seja pelo discurso de defesa alimentado por parte dos líderes europeus e da NATO, a reboque da guerra da Rússia contra a Ucrânia, a verdade é que estamos a ficar reféns de uma verdade. Basta percorrer as redes sociais e as caixas de comentário dos jornais para perceber a incapacidade de criticar o que é veiculado. Por mais fake que seja, a resposta óbvia, a da fobia, vence o questionamento.
E é aí que radica o aspeto mais importante desta equação com solução previamente definida. Ao definirmos uma solução, estamos a ficar reféns dela mesma, tornando-nos alvos fáceis a todo um mundo de jogos que nos manipula com toda a facilidade. Basta ativar o modo anti-Putin. E, dessa forma, o líder russo passa a ser o centro da própria medida da realidade, o seu racional. Putin, mesmo que não tenha sido o responsável pelo apagão de segunda-feira, já ganhou.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico