publico.pt - 29 abr. 20:02
O autocarro da amizade chegou a Beja com o apagão
O autocarro da amizade chegou a Beja com o apagão
Em Beja, o PÚBLICO cruzou-se com uma pequena excursão de mulheres entre os 70 e 85 anos a quem o apagão de segunda-feira trocou as voltas e levou numa inesperada aventura.
Balbina Silva, 73 anos, viúva, tem problemas de audição e precisava de calibrar os aparelhos, necessidade que não estava a conseguir superar perto de casa. Os constantes lamentos junto da amiga Bia, a quem implorava ajuda, tiveram como resposta uma solução inesperada: “Olha, se queres tratar dos aparelhos, vai a Beja.”
Surpreendida com a alternativa que a amiga lhe propunha, Balbina colocou a proposta à discussão no grupo de 18 mulheres, quase todas viúvas, que integram o movimento “Coisas e Loisas”, instalado no Clube Águias Unidas do Fanqueiro, onde costuram, fazem malha ou crochê de enxovais que depois entregam a jovens mães solteiras na associação Ajuda de Mãe, em Lisboa.
Entre sorrisos e gargalhadas, as amigas de Balbina avançaram com uma sugestão: “Se fores a Beja a gente vai contigo!”
O grupo de Foros de Amora, localidade do concelho do Seixal, faz periodicamente visitas a teatros, museus e exposições – “e até já fomos à baixa do Porto”, explica Bia, de 65 anos, que coordena as actividades do “Coisas e Loisas”. “Depois de uma vida subordinadas aos fazeres de casa e às necessidades de filhos e maridos, hoje fazem o que nunca julgaram possível, como viajar 180 quilómetros rumo a Beja sem ter que se justificar a quem quer que seja, mesmo quando a família coloca reticências à sua liberdade por recear os imprevistos próprios da idade avançada.”
E foi assim nove companheiras prepararam logo o programa e decidiram viajar de comboio para apreciarem o Alentejo a tiracolo da amiga que queria ouvir melhor.
“Bom, deve ser coisa breve”Um primeiro azar: estava marcada uma greve dos comboios para segunda-feira e a alternativa empurrou-as para os autocarros. Assim, pelas 7h30, juntaram-se todas em Almada e seguiram animadas para Beja. À chegada, o relógio já passava das 11 horas e, como o propósito da viagem não se resumia à calibragem dos aparelhos de Balbina, as amigas ansiavam por explorar a cidade alentejana.
Até a amiga Perpétua, de 72 anos, que é natural de Beja, não escondia o entusiasmo de regressar à terra onde nasceu e que deixou com apenas sete anos de idade. “Há muitos anos que não vinha a Beja”, recorda. Após o longo interregno, depara-se com uma cidade que já não é bem aquela que a sua memória ainda conseguia recuperar.
As restantes companheiras guardavam-se para uma visita ao Café Luís da Rocha, para onde tinham almoço marcado com pratos da gastronomia alentejana – migas e ensopado de borrego –, e ceder à gula com as variedades de pastelaria expostas no balcão logo à entrada.
Como o estabelecimento onde Balbina ia calibrar os aparelhos ficava mesmo perto do Luís da Rocha, a paragem prometia ser rápida. Balbina ficou a aguardar que a chamassem, ela que também tinha pressa em chegar à doçaria mesmo ali à mão. Mas eis que as luzes se apagam e o aparelho de calibragem, que funciona a electricidade, deixou de ter utilidade.
“Bom, deve ser coisa breve”, pensavam todas. Não foi. As notícias iam chegando e não garantiam energia para breve. Compasso de espera atrás de compasso de espera, até à desistência final. A situação não tinha remédio e a calibragem dos aparelhos teria de ficar para outra altura.
“Paciência. Ala para o Luís da Rocha!” Mas também o café se encontrava às escuras. “E agora? A gente não come?” Tiveram sorte, porque tinham marcado mesa com antecedência: o pessoal do restaurante descansou-as com sete pratos de migas alentejanas e dois de ensopado de borrego.
Perguntaram aos funcionários como é que o milagre das refeições estava a acontecer. É simples. No Luís da Rocha, que já tem 132 anos de existência, os fogões trabalham a gás e a água vem de cisternas que acautelam os momentos de corte.
“Fomos atendidas com uma atenção fantástica. Os senhores foram muito simpáticos e prestáveis”, testemunharam as amigas de Balbina, quase em coro, quando o PÚBLICO se cruzou com a excursão nas ruas de Beja. De barriga cheia, o grupo aventura-se pela cidade, mas encontra tudo fechado: as visitas programadas ao castelo, ao museu regional (que está em obras) e ao fórum romano de Beja acabaram por ficar para uma próxima oportunidade.
Com o andar das horas, o cansaço e as necessidades básicas começam a falar mais alto. O que fazer sem café ou sanitários públicos abertos? A sorte não as abandonou e os funcionários de uma superfície comercial de Beja deram-lhes acesso ao WC.
Regresso à infânciaGratas pela gentileza, rumam então ao Jardim Público de Beja para descansar da caminhada e fazer horas até ao regresso a Foros de Amora, no concelho do Seixal, onde todas residem.
No parque infantil, vazio de crianças, não resistiram ao desejo de andar de baloiço. E à sombra do arvoredo – a temperatura ambiente tocava nos 28 graus Celsius –, retemperaram as forças, aliviaram o peso das pernas e descreveram entre si as suas impressões da visita.
No regresso à estação rodoviária, posaram para a última fotografia junto ao painel de azulejos que retrata uma alegoria ao tempo das ceifas. Um último acenar marcou a despedida do grupo de amigas de Balbina, que veio a Beja tratar dos aparelhos para a audição, mas vai continuar a ouvir mal por mais alguns dias.
De regresso a casa, Balbina conseguiu recolher informações sobre o apagão à luz de uma lanterna de campismo e a ouvir um rádio a pilhas. “Fiz um regresso aos anos 1960”, brinca.