observador.pt - 29 abr. 21:31
Nos supermercados, o apagão trouxe memórias da pandemia e vendas recorde de carvão. “O primeiro instinto nunca foi fechar”
Nos supermercados, o apagão trouxe memórias da pandemia e vendas recorde de carvão. “O primeiro instinto nunca foi fechar”
Distribuição não registou distúrbios no apagão, apesar de "açambarcamentos" que responsáveis consideram desnecessários. Medidas de contingência estiveram previstas mas não foi preciso ativá-las.
Abriram as portas de manhã para um dia normal a atender clientes. Antes do meio dia, tiveram de pôr em marcha um plano de emergência, em alguns casos mais improvisado que noutros. No setor da distribuição, o dia do grande apagão trouxe memórias dos tempos de emergência da pandemia. Em 2020 como a 28 de abril de 2025, “o primeiro instinto nunca foi fechar”.
Mas foi isso que aconteceu em vários supermercados. Sobretudo nos formatos mais pequenos, como explicam ao Observador as associações do setor. “Pelo levantamento que fizemos, entre 80% e 85% das lojas estiveram abertas”, diz Gonçalo Lobo Xavier, diretor geral da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED). O mesmo responsável dizia esta segunda-feira, no pico do apagão, que algumas lojas tinham optado por fechar por questões de segurança dos trabalhadores, dos clientes e até dos alimentos. E não faltaram, ao longo do dia, exemplos e imagens de supermercados de portas fechadas. “As que fecharam foram as lojas mais de bairro, as de menor dimensão, formatos mais pequenos”, esclarece Lobo Xavier.
“As lojas grandes têm estruturas e geradores que são capazes de aguentar bastantes horas não só com a operação normal mas também com a operação de frio na máxima capacidade. Isto já não acontece nas lojas mais pequenas. Houve uma opção estratégica das insígnias de fechar para salvaguardar a segurança dos trabalhadores e alimentar dos produtos. Concentraram a força dos geradores na linha de frio para não haver uma quebra tão acentuada”, explica.
A perceção de Luís Brás é semelhante, mas com uma ressalva. O secretário-geral da ADIPA (Associação dos Distribuidores de Produtos Alimentares) revela que a associação está ainda a conduzir um inquérito junto dos associados, cerca de 300 que incluem dois mil supermercados espalhados pelo país, para perceber o que correu bem e o que falhou. Para já, adianta Luís Brás, é possível perceber que “muitas empresas conseguiram responder porque têm planos B para falhas de energia, com geradores próprios”. Os encerramentos acabaram por ser inevitáveis a certa altura, afirma, por causa das falhas nas comunicações.
“As comunicações não estão preparadas e não respondem a situações de extremos. É esse o feedback que estamos a receber. Chegámos à conclusão que o setor das comunicações tem de arranjar alternativas”, defende. Como foi noticiado, os operadores reconfiguraram as suas redes e chegaram a apelar ao uso responsável das comunicações móveis, porque a rede que suporta os serviços móveis começou a falhar à medida que as baterias e os geradores deixaram de ter carga.
Na distribuição, “as comunicações são fundamentais para os sistemas informáticos funcionarem”, nomeadamente alguns sistemas de pagamento e faturação, completa Luís Brás. “Aqui não há plano B”. Na grande distribuição “a maior parte dos sistemas de pagamento, enquanto houve energia, funcionou”, diz Gonçalo Lobo Xavier. Na maior parte das lojas mantiveram-se os pagamentos offline. “Foi uma lição interessante”.
A outra lição, vincam os responsáveis do setor, remonta aos idos de 2020. Pelo menos entre quem faz os supermercados funcionar. A crise da falta de energia foi muito diferente da pandemia, mas a Covid fez com que as “equipas estivessem muito bem preparadas para lidar com momentos de alta pressão”, diz o responsável da APED. E fez com que se percebesse “a importância de termos um tecido empresarial suficientemente diversificado para garantir oferta, e não só um formato de comércio”, reforça o porta-voz da ADIPA. “Cada crise que passa dá-nos razão, todos os formatos, do maior ao mais pequeno, são importantes”.
A lição que ficou por aprender, concordam os dois responsáveis, foi do lado dos consumidores. Ao longo do dia, não faltaram imagens de prateleiras de supermercado vazias e de grandes filas para as caixas de pagamento. A palavra “açambarcamento” voltou a ouvir-se, cinco anos depois. “Houve um consumo verdadeiramente épico de água, leite, conservas, velas e carvão”, diz Gonçalo Lobo Xavier. “As pessoas recorreram aos seus churrascos, o carvão foi quase todo”.
Nos supermercados Continente, do grupo Sonae, ‘voaram’ das prateleiras produtos como água engarrafada, enlatados, pão industrial, carvão, pilhas e lanternas, refere a empresa num comunicado. O Continente garante que “a larga maioria das suas lojas se manteve aberta e em funcionamento, através da otimização da gestão de recursos e de sistemas de redundância, com interrupções pontuais para reabastecimento dos geradores”. Não foram registados incidentes e nas entregas ao domicílio “concretizaram-se 80% dos serviços, estando os restantes reagendados para as próximas 48 horas”. O Observador contactou também o Pingo Doce, do grupo Jerónimo Martins, que remeteu para a APED.
Apesar de não haver incidentes a reportar, (“não houve casos de falta de civismo nem discussões”, garante Lobo Xavier), a verdade é que o setor da distribuição lamenta a atitude dos cidadãos. “Não houve ensinamento à população em geral. Esta súbita corrida aos supermercados é fruto de desinformação, de receio… As pessoas confiam em nós, mas se calhar não era preciso esta ansiedade para ir comprar ��gua, velas e papel higiénico”, admite o líder da APED.
“Sempre alertámos para o facto de não devermos acorrer em massa aos supermercados, desestabilizamos a oferta. Não faz sentido açambarcar se não tivermos necessidade de um produto. É preciso ponderação, quer estejamos numa pandemia, numa guerra ou noutra coisa qualquer”, corrobora Luís Brás.
Apesar da corrida a alguns produtos, não houve lojas a impor limites ao consumo nem a racionar certos bens, garante o setor. Houve, sim, uma “gestão de loja e de armazém muito eficiente”, refere a APED, não só para gerir quantidades como para mitigar o risco de perda de alimentos. “Não foi só reagir, houve planeamento prévio. Queremos que as empresas tenham planos de emergência”, reforça a ADIPA.
Governo com “linha aberta” e plano para abastecimento de geradoresO contacto com as autoridades foi permanente, garante Lobo Xavier. Um encerramento geral nunca esteve em cima da mesa, mas havia medidas de contingência prontas a avançar. “O ministério da Economia teve uma linha aberta connosco para sinalizarmos quando houvesse problemas”, revela o diretor da APED. “A preocupação foi saber se estávamos a aguentar, se estávamos a conseguir abastecer a população e saber do que iríamos precisar caso estivéssemos mais horas sem energia”.
Nomeadamente, chegou a ser trabalhada a possibilidade de ser prestado apoio logístico ao setor para garantir que os geradores podiam ser reabastecidos com combustível para continuarem a funcionar. Acabou por não ser necessário. “As coisas estavam a funcionar de forma ordeira” e durante a tarde foram chegando notícias animadoras de Espanha. Alguns associados da APED operam também no país vizinho, e foram dando nota do regresso da energia. “Isto deu-nos alento para pensar que era uma questão de horas até chegar a nós. Isso foi importante para motivar as equipas”.
Do lado da ADIPA a experiência foi diferente. Luís Brás diz que não houve contactos com as autoridades e espera que, numa crise futura, haja mais “coordenação nesse sentido” para “criar estabilidade emocional nas pessoas”. Sem comunicações, “às 16h desistimos, não havia nada a fazer para ajudarmos as empresas”. Mas ressalva que o tom não é de crítica. “Não podemos ter a veleidade de pensar que mesmo o Governo tem a informação toda nas primeiras horas”.
Na APED também houve “dentro do possível” comunicação regional com as autarquias, “sobretudo fora de Lisboa e Porto. Ficou a prova, diz a APED de que “há mecanismos” para lidar com situações de crise. “Houve uma preocupação do ministério da Economia e e do Ministério da Agricultura, através do Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral (GPP), que estiveram sempre em contacto connosco”. Ao princípio da noite, com a eletricidade reposta, a operação logística foi voltando ao normal. Esta terça-feira arrancou nas lojas “não diria na máxima força mas com as lojas carregadas. Ainda com um ou outro produto não totalmente recuperado”, mas com perspetivas de que isso acontecesse até ao final do dia.