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O descalabro da judicialização da política

O descalabro da judicialização da política

O MP e os tribunais têm o dever de fazer aplicar a lei, mesmo àqueles que o povo escolhe. Mas até que ponto se podem sobrepor ou influenciar decisivamente essas escolhas, tornando-as inexistentes?

Há uma pergunta que tem de se colocar: qual a legitimidade do Ministério Público (MP) português para realizar ações que interferem diretamente com o processo político democrático, como foram as que levaram à queda do Governo Costa e os inquéritos de averiguação a Luís Montenegro e a Pedro Nuno Santos?

O certo, é que estamos a assistir impávidos a uma perigosa judicialização da política, não só em Portugal, mas um pouco por todo o lado. Marine Le Pen, potencial vencedora das próximas eleições presidenciais francesas, e dirigente da denominada extrema-direita francesa, foi condenada num processo-crime em Paris. Uma das sanções aplicadas pelos juízes foi o impedimento de ser candidata presidencial. Imediatamente, Le Pen declarou-se vítima de uma “sentença política” que visa impedir "a favorita para as eleições presidenciais de poder candidatar-se" em 2027. Em Israel, no Brasil ou na Roménia não é diferente. Os tribunais intervêm para afastar candidatos, investigar incumbentes ou punir políticos. A defesa dos políticos atingidos é sempre a mesma: a intervenção dos tribunais é uma ameaça à democracia e constitui uma perseguição política, os juízes são perigosos esquerdistas ou fascistas, agentes do poder político ou membros de organizações secretas. A defesa dos arguidos passa sempre para o nível do político descredibilizando, ou não reconhecendo, legitimidade aos tribunais, que não são eleitos, para fiscalizar aqueles que são eleitos ou podem sê-lo no futuro.

Voltando a Portugal, hoje, o primeiro-ministro, a braços com um possível problema judicial (ainda nem sequer nascido, mas potencial), resolveu levar o país a eleições para garantir uma absolvição popular.

A judicialização da política em curso não é um dado novo. Em Roma, muitos dos julgamentos em que Cícero participou com eloquência tiveram impactos e objetivos políticos. Um dos seus julgamentos mais famosos foi o de Gaio Verres, em 70 a.C., em que Cícero processou o corrupto magistrado romano pelos seus atos ilícitos na Sicília. Mesmo sem o resultado, Verres exilou-se voluntariamente.

No Portugal atual, esta judicialização da política data do final dos anos 1980, quando Narciso da Cunha Rodrigues, enquanto procurador-geral da República, abriu vários processos criminais dirigidos a figuras mais ou menos relevantes dos governos de Cavaco Silva, que habitualmente eram anunciados nas páginas do jornal O Independente.

A partir dessa altura, o MP e os tribunais passaram a fazer parte do jogo político. Alguns governantes tiveram sucesso em condicionar temporariamente o poder judicial, outros não.

Contudo, no final, a verdade é que uma conjugação do poder judicial e mediático se tornou uma das maiores forças políticas do país, sobrelevando nalgumas circunstâncias o processo democrático e eleitoral.

Muitos defenderão que está bem assim, uma vez que ninguém está acima da lei e a justiça deve ser para todos. Em teoria, esta afirmação até estaria correta, mas a realidade é diferente. A atuação concreta na judicialização da política não leva os processos até ao fim, estes são, regra geral, demorados e, quando estão decididos, já a ninguém interessam. O que se cria é um momento prévio, meramente indiciário, mas que interfere diretamente na política, afasta pessoas, fá-las cair em desgraça, termina-as politicamente, muito antes de qualquer condenação ou absolvição.

Os casos são inúmeros, mas basta citar dois casos de partidos diferentes. Um obviamente, aquele que levou à queda do Governo de maioria absoluta de António Costa. Até hoje, e já se passou mais de um ano, nada se sabe de concreto sobre esse caso, nem sequer há uma acusação formal. Outro, aquele que levou à demissão de Miguel Macedo, prestigiado ministro do PSD, hoje falecido, que no final foi absolvido, mas ficou com a carreira destruída.

Há aqui um problema de confronto de legitimidades, a legitimidade democrática contra a legitimidade legal. O Ministério Público e os tribunais têm o dever de fazer cumprir e aplicar a lei, mesmo àqueles que o povo escolhe. No entanto, até que ponto se podem sobrepor ou influenciar decisivamente essas escolhas, tornando-as inexistentes?

Não há uma resposta simples, mas há a resposta da prudência e do bom senso. O sistema democrático é um sistema de maiorias e de equilíbrios, em si mesmo contém suficientes mecanismos políticos para tentar prevenir abusos: direitos de oposição, diferentes poderes, Presidente da República, Governo, Parlamento, autarquias, direitos fundamentais de participação política e expressão, entre outros. Seriam estes mecanismos e entidades que deveriam operar na normalidade, e não os mecanismos judiciais.

Os mecanismos judiciais devem ser a exceção e não a regra, e só deveriam intervir em casos extremos

Os mecanismos judiciais devem ser a exceção e não a regra, e só deveriam intervir em casos extremos. Casos extremos são situações em que o equilíbrio democrático não existe, a oposição é muito frágil, os poderes estão concentrados no mesmo partido e os media estão adormecidos, ou aqueles casos em que há um claro e evidente, para além de qualquer dúvida, abuso do Estado e dos seus dinheiros por parte alguma entidade. Não sendo assim, a justiça dever-se-ia abster de interferir no processo democrático; a realizar alguma investigação, deveria fazê-lo assegurando o mais estrito segredo de justiça e só viria a público quando tivesse quase certezas e de enorme gravidade. Não teve sentido investigar o ministro Centeno por causa de uns bilhetes para o futebol do Benfica, como não têm sentido outras investigações anunciadas durante anos, com desenlaces duvidosos.

A justiça na política deve ser para emergências e não uma presença habitual. A não ser assim, a justiça torna-se ela própria política e perde a credibilidade e a sua função constitucional de garante da dignidade e legalidade do Estado.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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