publico@publico.pt - 29 abr. 13:11
Uma tarde sem luz e emails: as melhores horas que tive nos últimos tempos
Uma tarde sem luz e emails: as melhores horas que tive nos últimos tempos
Estamos todos iguais e quando a luz voltar não vai haver emails, porque ninguém os pôde enviar. Não há problemas, eu não sou necessária, meu Deus, a tranquilidade.
Acordei coxa de um pé e custou-me a manhã. Passear o cão, correr para a escola já atrasada, entrar a coxear com a lancheira, mochila e as duas malas do costume. Dei a primeira aula: o primeiro dia depois das férias é sempre qualquer coisa — eles estão felizes, animados (a maioria) e eu também, porque gosto muito de os voltar a ver. Noto que alguns cresceram: é incrível os centímetros que um adolescente cresce num par de semanas.
Alguns vieram com uma espécie de barba por desfazer. Muitos estavam bronzeados e eu, por muito que lhes diga que invejo o bronze, na verdade adoro vê-los assim com as bochechas queimadinhas e as roupas de primavera, não sei, parece que ficam mais felizes, saudáveis.
A meio da manhã as luzes apagaram-se e, pouco depois, entendi que assim estavam por todo o país.
“Finalmente vou pegar no livro da mesa-de-cabeceira que há tanto me espera.” Depois, um colega disse palavras que me acordaram para um outro lado da realidade: “E o aviões? E os hospitais?”. Levei a mão à boca, censurei-me por pensar que este evento poderia ser bom. Ainda dei duas aulas, bem-sucedidas. Afinal, com quatro malas o que não me faltava eram materiais didácticos.
Almocei a frio, convivi ainda e foi nessa conversa que pensei na porcaria do frigorífico e do congelador. Segui caminho para atravessar uma parte de Lisboa. Trânsito: medonho.
Sem semáforos, filas de pessoas a atravessar passadeiras no meio de uma multidão de automóveis em marcha lenta, em auto e hererogestão. Os condutores apreensivos, mas com uma compreensão do mais racional possível. Rotunda de Entrecampos, o cenário repete-se, ainda mais povoada de carros e de pessoas, com sons de sirenes no fundo e uma agitação que não condizia com a habitual.
Senti um certo orgulho patriota. Não esperava isto de Portugal, certamente não de Lisboa. No meio do caos, calma. Os apitos foram raros, não vi ofensas entre condutores (e quem conduz na capital sabe que isto já supera o padrão), um entendimento racional entre nós e os peões. Senti-me segura.
Chegada a casa a rádio estava a dar e não havia nada que fazer. Lembrei-me da telefonia do meu avô e senti-me em casa ao ouvir os locutores. Nunca mais tinha ouvido rádio em casa, apenas no carro, que estupidez, que perda.
Fui responder às necessidades de quem há tanto tempo chamava por mim: o conjunto pouco modesto de plantas, que tanto estimo, mas que com tanto trabalho se perderam ultimamente no meio da minha to do list. Tarde na varanda, a podar, a cuidar, a aproveitar os barulhos da rua, pessoas a sair das suas casas rumo ao sol. Tarde com as minhas plantas e com o meu cão, enquanto via as ruas em torno da minha mais habitadas do que nunca. Pessoas no jardim e os cafés com música. Uma sensação que não tinha desde que saí da minha terra, onde todos se conhecem e as tardes de Verão são infinitas em convívio, prolongando o pôr-do-sol a um ponto que parece que somos nós que decidimos quando é que ele se põe.
Tarde na varanda do meu quarto e a única pressa é podar aquela, transplantar a outra, borrifar, varrer a terra do chão, arrancar as daninhas que crescem no meio das aromáticas.
A liberdade de saber que não há um email à minha espera: ninguém o pode enviar. Ninguém espera que eu trabalhe, responda, resolva.
Varro o chão da varanda, recolhidas as folhas mortas. Agachada com a pequena vassourinha a vassourar, oiço gritos e palmas. “Os miúdos foram para o campo jogar futebol?” Levanto-me e vejo luzes nas casas e pessoas nas varandas. Sento-me na cadeira com uma nostalgia instantânea, poderosíssima.
A luz voltou, acabou-se.
Em casa chamam-me, felizes, eu já sabia e eu estava completamente arrebatada porque me fugiu das mãos um pedaço de paz que eu não sentia há anos, uma paz que eu não sabia, eu não me lembrava que existia.
Claro que eu nunca quis que amanhã fosse igual, nem pensei que "O apagão" durasse muito tempo. Somente pude recuperar por poucas horas tempo que é meu, mas que, na realidade, nunca o é: há alguém à espera de uma resposta a um email, da ficha corrigida, das notas lançadas, do paper entregue, do projecto terminado. Foram as melhores horas que tive nos últimos tempos.