publico.pt - 29 abr. 20:02
Empresa espanhola reconheceu há dois meses possibilidade de apagão
Empresa espanhola reconheceu há dois meses possibilidade de apagão
A rede eléctrica europeia está a evoluir para um sistema renovável e descentralizado. “Essa transição traz desafios técnicos reais — mas são superáveis, não argumentos para recuar”, defende a Zero.
Há dois meses, a possibilidade de se registarem “desconexões de geração” que podiam ser “severas” e afectar “significativamente” o fornecimento de electricidade foi admitido pela Red Eléctrica de Espanha (REE), a empresa que gere o sistema de distribuição de electricidade naquele país, parcialmente privatizada a partir de 1999.
A maior instabilidade da rede, perante o aumento das fontes de energia renovável, era citada no relatório e contas da Redeia (a marca comercial da REE) como a origem desse risco associado à transição energética, noticiava o jornal espanhol El Confidencial no fim de Fevereiro.
Na sequência do apagão ibérico desta segunda-feira, a notícia foi retomada nas redes sociais, em especial no X, recuperando um excerto de uma entrevista de há 20 dias de Beatriz Corredor, presidente da Redeia e ex-ministra socialista, onde dizia que a rede eléctrica espanhola era das mais seguras e um apagão não poderia suceder.
Os motivos do aumento do risco de apagão prendiam-se com “a incapacidade da rede de lidar com o aumento da produção de energias renováveis, por vezes proveniente de instalações mais pequenas, como as de autoconsumo, e com menor capacidade de adaptação perante eventuais perturbações”, escreve o jornal El País.
Desafios superáveisO diário El Mundo também recuperou esta notícia e fez dela sua manchete nesta terça-feira, destacando que “a entrada maciça da [energia] fotovoltaica nas horas centrais do dia está a provocar situações de enorme instabilidade na rede”.
A ausência cada vez maior de energia produzida por instalações de geração convencional (carvão ou ciclo combinado) e nuclear, fontes energéticas que garantiam maior estabilidade na rede, é também apontada como uma potencial causa de apagões em Espanha. “Implica uma redução das capacidades de equilíbrio do sistema eléctrico”, escreve o jornal El Confidencial, citando o relatório e contas da Redeia, enviado à Comissão Nacional do Mercado de Valores.
O discurso público de Beatriz Corredor, no entanto, não tem reconhecido este risco, o que foi não só criticado, mas também usado como arma de arremesso contra o Governo.
“A rede eléctrica europeia foi concebida para um modelo centralizado e fóssil, e agora está a evoluir para um sistema renovável, digital e descentralizado. Essa transição traz desafios técnicos reais — mas são desafios superáveis, e não argumentos para recuar”, explicou, em comunicado, a associação ambientalista portuguesa Zero.
Reactores paradosNo momento do apagão, a energia solar garantia 70% da procura de electricidade em Espanha, com 17 a 18 GW (Gigawatts) de geração. O presidente do Governo, Pedro Sánchez, disse que a perda de geração súbita registada às 11h33 de Lisboa foi de 15 GW da geração, durante apenas cinco segundos. Para se perceber a dimensão do problema, descreve o jornal El País, as cinco centrais nucleares operacionais espanholas têm uma potência instalada de 7,4 GW.
Só que estas cinco centrais nucleares estão paradas há vários dias, “porque os proprietários consideram que não são competitivas face às energias renováveis”, salientou Pedro Sánchez. O calendário de encerramento das centrais começa um dos reactores de Almaraz em 2027 e culmina com o fecho da de Trillo em 2035. O Partido Popular e o Vox, de direita, contestam este calendário.
Almaraz, precisamente, que fica junto ao rio Tejo e preocupa os portugueses, está encerrada. Essa opção já ocorreu em anos anteriores, mais uma vez justificada com o aumento da produção com base nas energias renováveis, sobretudo eólica e solar.
Um relatório da Rede Europeia de Operadores de Sistemas de Transmissão de Electricidade (ENTSO-E) prevê, no entanto, a possibilidade de aumentar em Espanha o número de horas com problemas de abastecimento com os reactores de Almaraz parados, frisando que “esta não é uma boa medida”, pois põe “maior pressão sobre o sistema eléctrico espanhol.
“Ignorância”, acusa Pedro SánchezO presidente do Governo espanhol rejeita que o problema seja “um excesso de energias renováveis”, como o definem os críticos do abandono da energia nuclear. Este apagão aconteceu no meio de um aceso debate sobre o fim da energia nuclear em Espanha, que tem uma forte marca ideológica, com a direita a defender a continuação das centrais.
“A procura era de 25.180 MW (MegaWatts), bastante normal. A disponibilidade era ampla. Quem vincula este incidente à falta de energia nuclear mente ou demonstra a sua ignorância”, declarou Pedro Sánchez. “As centrais nucleares, longe de terem sido uma solução, foram um problema, porque estavam desligadas e foi necessário enviar energia para as manter”, concluiu.
A associação portuguesa Zero salienta a necessidade de “uma investigação técnica independente, transparente e rigorosa, sem aproveitamentos ou notícias falsas”.
Para além de descobrir a causa imediata do apagão ibérico, compreendê-lo deve “abrir caminho para um aperfeiçoamento dos sistemas eléctricos, que precisam de se adaptar tecnicamente à nova realidade: uma rede assente em renováveis. Desde logo, o sistema nacional”, salienta a Zero, em comunicado.
Sistema eléctrico europeu tem de se adaptar rapidamenteO relatório de 2024 da Rede Europeia de Operadores dos Sistemas de Transmissão de Electricidade (ENTSO-E) reconhecia que a transição energética nos Estados-membros da UE está a trazer mudanças a “um ritmo sem precedentes”. Exige a integração de volumes cada vez maiores de energias renováveis variáveis, que obrigam o sistema de energia a adaptar-se rapidamente.
A Avaliação da Adequação dos Recursos Europeus de 2024, que monitoriza o progresso do sistema energético até ao horizonte temporal de 2035, analisa as consequências resultantes da transição energética na União Europeia, motivada pela ambição de alcançar a neutralidade climática até 2050.
A questão das centrais nucleares não é questionada. Mas o relatório diz que um “volume significativo” de centrais eléctricas de ciclo combinado “poderá tornar-se economicamente inviável nos próximos anos, se não forem criados incentivos”.
Além da integração de cada vez mais energias renováveis no sistema eléctrico, a nova realidade energética que está a emergir na UE inclui a “o aumento da descentralização, o aparecimento de novos intervenientes no mercado, a inovação e a digitalização, e a eliminação gradual das unidades de geração térmica alimentadas a combustíveis fósseis”, salienta o relatório de 2024. Estes desafios exigem resposta rápida.
As mudanças drásticas na situação geopolítica, por outro lado, tornaram mais fundamental do que alguma vez foi garantir a segurança e adequação das infra-estruturas energéticas europeias. O relatório sugere aos operadores do sistema que “devem salvaguardar a segurança do abastecimento e manter um equilíbrio entre a oferta e a procura no sistema interligado durante todo o ano”.
O documento salienta como o sistema energético europeu está “altamente interligado”. Perante a nova realidade da produção energética, “as soluções aplicadas num país podem vir a impactar os países vizinhos”, lê-se.
A capacidade de geração de energia renovável deverá expandir-se ao longo dos próximos anos. O relatório salienta, no entanto, que devido à “intermitência das renováveis, a capacidade não será suficiente para compensar o declínio esperado na geração térmica e a crescente electrificação até 2035”.
Para garantir a segurança eléctrica e cumprir os objectivos climáticos, a Europa “deve acelerar a implementação de soluções de flexibilidade e de infra-estruturas, incluindo a electricidade transfronteiriça, a rede de transmissão para direccionar a electricidade para onde é mais necessária, bem como o armazenamento e outras fontes de flexibilidade”.