publico@publico.pt - 29 abr. 21:41
De quatro
De quatro
O que fica deste livro é sobretudo a coragem de uma escritora em ficcionar a coragem de uma personagem.
Ninguém sabe o que se passa. Somos atirados para as nossas vidas por um vento que começou a soprar há milhões de anos.
Miranda July, De quatro
Não passou muito tempo sobre um artigo publicado no jornal Expresso (11 de Abril), apontando o actual desinteresse sexual dos jovens adultos, destacando, todavia, a excepção de mulheres nascidas entre 1965 e 1980, cujo compromisso com o prazer parece um dado transformador, algo exuberante e raiando a experiência radical. Não seria motivo para este artigo, se não calhasse ter o romance de Miranda July (Quetzal, 2025) entre mãos e a quem usurpei o título para este enunciado e exercício de autocrítica.
Esta primeira obra da autora traduzida em Portugal não irá, suponho, para além das três estrelas para os críticos, mas tem o mérito de, à parte certo sensacionalismo e umas boas 100 páginas de aborrecimento inútil, usar de uma honestidade desassombrada. Afinal, as pessoas na meia-idade sofrem de amor, apaixonam-se, saem dos trilhos, imitam jovens desesperados, entregam-se à humilhação, saem desamparados e esfrangalhados – são os juncos silvestres. E muitas dessas pessoas são mulheres. Mas July – e sublinho-o para não impor uma visão reducionista do livro – emprega uma série de boas frases e passagens que julgo substanciais. O que fica deste livro, e provavelmente encontra reflexo em inúmeros leitores, é sobretudo a coragem de uma escritora em ficcionar a coragem de uma personagem. Como se não fosse necessária uma coragem tremenda para aceitar o sofrimento e assumir a vulnerabilidade mais grotesca. Quem não sofre não sabe o que é uma paixão. “Não gostaria de viver num mundo em que tivesse desperdiçado a minha oportunidade”; “Toda a minha vida interior – a minha alma – metia nojo, era vaidosa e profundamente egoísta”, lê-se em De quatro.
E depois há as outras pessoas – mulheres e homens; eu –, as que se julgam muito bem instaladas na sua vida, imunes. Vamos a elas.
Como se não fosse necessária uma coragem tremenda para aceitar o sofrimento e assumir a vulnerabilidade mais grotesca
Delas sabemos passarem a vida a fugir a responsabilidades. Se confrontadas com as consequências da insustentável leveza do seu ser, imitam a avestruz, procrastinam, desviam o assunto, fingem, ficcionam a sua dor, comprazem-se na vitimização. É muito raro, senão impossível, comprometerem-se, assumirem culpa ou remorso, baixarem a guarda – aliás, estão sempre à defesa. Em boa verdade, não se levam a sério e não levam os outros a sério. Brincam com eles, usam-nos, toda a sua vida é uma ficção de que são esquivos protagonistas, querem a fatia do bolo e o bolo todo, não abdicam de nada, mentem despudoradamente, em especial a si mesmas, e, quando se lhes pede que se levem efectivamente a sério, preferem descobrir pretextos, por norma sustentados em frases feitas – desconhecem verdadeiramente a vulnerabilidade, pois, antes dela, têm já armada a tenda do drama. Não obstante, apelam à sua dignidade, como se não lhes assentasse a caricatura existencial de figuras de papel. Têm conversa, isso sim. E quem lhes dê amistosas e encomiásticas pancadinhas nas costas.
Uma outra característica lhes assenta: recusam-se a crescer – o crescimento significaria tomar decisões difíceis, mas é o fácil que procuram. A vida, para esta gente, não pode comportar riscos e, muito menos, gerar conflitos existenciais – isso só encontram na arte, na metafísica ou nos problemas dos outros, a que assistem da varanda do seu estatuto; a vida, portanto, resume-se à gestão de um sistema de que retirem, hedonisticamente, tão-só frutos, dividendos, vantagens. Exigem protecção mas não protegem nem têm contemplação por quem sofre – no seu magoado silêncio sem fim, exploram o erro do outro até à exaustão. Bendizem a normalidade de que se revestem e fingem um toque de atrevimento socialmente programado. Chegam a adular os irreverentes, os excepcionais, os geniais. E, para citar o velho Palma, na menos desinteressante excepção de uma das suas letras, “vivem escondidos a vida inteira, que ao domingo sabem de cor o que vão dizer na segunda-feira”. Fora isto, tudo bem.
Estar de quatro, virado do avesso, não é para todos. Pierre Drieu La Rochelle é muito claro: “Os mais egoístas são aqueles que não conseguem resistir ao gesto da desgraça que desconfiam que o mendigo na rua simule”. É tentador afastar da vista e do coração a dor dos outros. É o que eu costumo fazer. Miranda July procura contrariar esta visão.
Finalmente, há uma terceira categoria de pessoas. Essas não apanham nada.