publico.pt - 29 abr. 15:04
Lisboa regressa à normalidade: “Já está tudo resolvido, graças a Deus”
Lisboa regressa à normalidade: “Já está tudo resolvido, graças a Deus”
Metro e eléctricos voltaram a circular. Hotel que ficou sem energia e sem água ofereceu aos hóspedes jantar de sanduíches e saladas.
Isaura Carvalho segue devagar rua de São Paulo fora, que o corpo já não está para pressas aos 85 anos. “A noite de ontem foi menos mal. O dia é que foi pior”, conta, enquanto a cidade retoma a normalidade nesta terça-feira depois de um dia de pandemónio. Já há gente outra vez a juntar-se na estação do Cais do Sodré para apanhar o metro, que voltou a circular antes das 9h, e os eléctricos também já andam nos carris, para gáudio dos turistas mais ou menos assarapantados com a memória do apagão.
Isaura não é assustadiça, e se o dia de ontem não lhe correu bem foi por ter passado hora e meia presa dentro de um táxi para nada. Já o país estava sem energia há algumas horas quando saiu de casa, no típico bairro da Bica, para ir a uma consulta no médico. “Desmaiei na rua um destes dias”, justifica. A corrida no meio do caos do trânsito ficou-lhe por 16 euros e, quando chegou ao consultório, “não havia nada para ninguém”.
Desde Novembro que uma muleta a ajuda a segurar os passos, mais frágeis depois de ter partido um pé. Durante 35 anos trabalhou não longe daqui, no Terreiro do Paço, primeiro, no edifício que é hoje um hotel e, depois, do outro lado da praça. Como funcionária pública serviu 27 ministros da Administração Interna. “E nunca me dei mal com nenhum”, assinala.
Para evitar mais extravagâncias, ontem regressou a casa de autocarro, “até porque não tinha ninguém à espera”. Apanhou o 732 e nem passou no supermercado para se abastecer: “Mal seria que isto fosse tão grave que tivéssemos de andar por aí a açambarcar tudo.” Diga-se de resto que nesta zona da cidade as embalagens de papel higiénico continuam a reluzir imaculadas nas prateleiras dos supermercados. Nalguns casos nem foi preciso reabastecer.
O dono de uma loja chinesa explica que vários dos produtos mais procurados ontem – rádios a pilhas e lanternas — ou não os tinha ou tinha-os em quantidade insuficiente. A única coisa que fez Isaura para se prevenir foi encher umas garrafas de água. “Tinha sopa feita, conservas e fruta. Acendi uma vela e desenrasquei-me. Mas já está tudo resolvido, graças a Deus.”
E foi assim que todos fizeram, desenrascaram-se como puderam. Capitão-tenente na Marinha, Dinis Barbosa conta que no edifício da Marinha, na Rua do Arsenal, ainda ficaram à espera um par de horas que a luz regressasse. Quando perceberam que isso não ia acontecer tão cedo pôs-se a caminho de casa, no Areeiro: “Não valia a pena apanhar o autocarro, eram filas intermináveis. Foi um bocadinho caótico.”
Janor, de 36 anos, junta-se à pequena multidão que vai apanhar a linha verde no Cais do Sodré. Empregada de limpeza, garante nunca se ter deparado com um cenário destes no seu país natal, o Senegal, de onde saiu há já oito anos: “Terrible. Nunca tinha passado por nada assim, sem luz nem água nem Internet, tudo ao mesmo tempo”. No Barreiro, onde mora, só se fez luz já passava das 23h.
“Para mim foi um dia igual aos outros”, resume outra reformada, Carminda Martins. Veste-se com aprumo, ou não tivesse sido uma vida inteira recepcionista do hotel Sheraton, para onde entrou em 1973. Também não lhe deu nenhuma aflição quando a filha lhe mandou uma mensagem a dizer o que estava a acontecer no país inteiro, depois de ter ficado sem televisão nem Internet. “Tenho um filho em Madrid e ainda não consegui falar com ele, para saber o que se passou”, relata. Vai a caminho de Arroios, vinda de Paço de Arcos, onde frequenta uma associação para quem não sabe ficar parado, a A Avó Veio Trabalhar. “Não fui comprar nada. Quando dei por isso o supermercado por baixo de minha casa já tinha fechado. Só fiquei preocupada com a comida que tinha no frigorífico, que se podia estragar.”
Nas imediações, um casal sai apressado com as malas do hotel de cinco estrelas. Precisam de chegar depressa ao aeroporto: o voo de regresso a Paris foi cancelado, estão a tentar resolver o problema. “Ontem não havia luz no hotel nem água nas torneiras”, descrevem. “Para jantar ofereceram aos hóspedes saladas, sanduíches e snacks.” Mesmo não sendo ainda uma memória remota, à medida que a lufa-lufa do quotidiano toma conta da cidade o apagão vai-se desvanecendo.