observador.ptObservador - 30 abr. 00:17

Vai ficar tudo bem

Vai ficar tudo bem

Portugal é um caso agudo de "rally around the flag": na presença de uma crise profunda, os cidadãos juntam-se em torno do líder, sem fazer quaisquer questões e apoiando incondicionalmente o país.

Sempre que existe uma crise de grandes proporções em Portugal, seja ela curta, como o apagão desta semana, ou mais prolongada, como a pandemia, os políticos e decisores portugueses podem sempre contar com duas coisas. Por um lado, a esmagadora maioria dos cidadãos comportar-se-á com civismo e elevação. No apagão, por quase todo o lado, os portugueses foram ordeiros, calmos e demonstraram uma enorme paciência. Por outro lado, as elites podem contar que esses mesmos cidadãos serão poucos exigentes e tudo perdoarão. Para além disso, naturalmente, a maioria da comunicação social, com excepções, proclamará que o governo do dia fez tudo o que era possível. Tudo seguirá tranquilamente até à próxima crise.

Portugal é um caso agudo da existência do fenómeno que na ciência política se chama rally around the flag. Este comportamento é simples e está amplamente documentado na literatura científica: na presença de uma crise profunda, os cidadãos juntam-se em torno do líder, sem fazer quaisquer questões e apoiando incondicionalmente o país. Existem mecanismos psicológicos bem estudados sobre este fenómeno e, até certo ponto, a capacidade dos cidadãos se unirem em torno da liderança durante um momento complexo é positiva. No entanto, quando esse momento passa é preciso responder, no mínimo, a duas perguntas: esteve a liderança à altura da situação? O que deve ser alterado para as coisas correrem melhor?

A resposta à primeira pergunta é inequívoca. No momento mais difícil do seu mandato, Luís Montenegro e o seu governo falharam clamorosamente. Posso fazer esta informação com alguma tranquilidade por dois motivos. Sou Português e vivo em Madrid há anos. Conheço muito bem Lisboa e Madrid. Para além disso, assisti ao apagão a partir de Itália, o que me permitiu seguir em detalhe todos os passos de ambos os governos Ibéricos ao longo da tarde. Sejamos absolutamente claros sobre a gestão da crise durante a tarde.

Em primeiro lugar, para além de umas declarações prestadas a meio da tarde à saída de uma reunião sem dizer absolutamente nada à excepção de apelar à paciência (sic), Luís Montenegro apenas apareceu a falar ao país à hora de jantar, quando a situação se encaminhava para uma resolução e para um final razoavelmente feliz. A REN apareceu às 18h30m a dar explicações e, finalmente, a fazer algumas previsões, apontando mais duas horas de espera para o regresso da luz no Porto e um pouco mais para Lisboa.

Diferentemente, em Espanha, Sánchez apareceu de forma solene (a forma também conta!) por volta das 16h (hora de Lisboa), fez uma declaração longa e detalhada, pedindo calma, explicando exactamente a situação e a previsão de resolução, e alertando para a necessidade de propagação de informação falsa, que a essa hora pululava nas redes sociais, sendo inclusive, em Portugal, devido à falta de informação oficial, avançada por algumas televisões. Antes de Sánchez falar, em Espanha, Eduardo Prieto, director de emergências da rede eléctrica, ia actualizando o país com comunicações formais a cada trinta minutos explicando a situação. Às 13h54m (hora de Lisboa), Prieto presta declarações a dizer que a situação estará normalizada dentro de seis a dez horas, uma previsão absolutamente acertada. Em Portugal reinava o silêncio total. Os Portugueses precisariam de esperar quase seis longas horas, até que a REN se pronunciasse ao final da tarde, para ter previsões sobre o restabelecimento da electricidade.

Em segundo lugar, vamos à utilização das redes sociais enquanto mecanismos de difusão de informação oficial. É importante sublinhar que, numa situação como a de ontem, a informação oficial e confirmada é ouro. A desinformação é uma arma potencialmente perigosa, que pode causar o pânico entra a população.  Em 2025, a esmagadora maioria da população informa-se através das redes sociais. Portanto, seria lógico que o governo e as autoridades utilizassem estas plataformas para comunicar com a população. O argumento contra a necessidade dessa utilização é risível: a população não tinha acesso a telecomunicações, logo as redes sociais eram inúteis. A verdade é que, apesar de ter havido uma fatia da população que esteve sempre sem comunicações, a maioria das pessoas foi tendo acesso intermitente e houve até quem nunca chegasse a perder a comunicação. Mais, esta comunicação poderia ser destinada, por exemplo, às rádios que mantinham o país informado à moda antiga, ao pessoal hospitalar ou em grandes empresas que, graças aos geradores, estiveram sempre ligados. Uma análise brevíssima das contas de Twitter do governo e do primeiro-ministro mostra a total incompetência das autoridades Portuguesas. A conta da Moncloa, em Madrid, começou a fazer tweets a partir das 14h (hora de Lisboa) e não mais parou durante toda a tarde. Sánchez começou às 16h30m (hora de Lisboa). Em Lisboa, o governo escolheu ser mais comedido. O primeiro tweet sobre a situação do governo aconteceu (juro!) às 17h10m, mais de três horas depois do seu homólogo Espanhol. Luís Montenegro decidiu deixar-se para a tardinha e, com toda a tranquilidade, lá mandou um tweet às 19h13m a dizer que estava tudo bem. Seguiu-se um SMS da protecção civil a toda a população à hora do jantar quando, alas, já quase todo o país tinha electricidade.

A comunicação social tem um papel em tudo isto muito interessante e que merece análise. Em primeiro lugar, a rádio fez um trabalho excepcional, com destaque para as três rádios nacionais de informação – Observador, TSF e RDP. Em segundo lugar, a televisão foi simplesmente risível, especialmente nas primeiras horas, e, felizmente, muito pouca gente assistiu durante as horas críticas do apagão. As primeiras horas de apagão deveriam fazer corar de vergonha os directores de informação: a esmagadora maioria do tempo ocupado por directos com os chamados populares que iam contando as mais variadas peripécias, desde o que tinham comprado para o almoço, o atraso do autocarro, passando pelo papel higiénico que tinha acabado ou até onde tinham que ir buscar os filhos à escolha. Informação rigorosa não abundou. A imagem que a comunicação social e o governo deram durante as primeiras horas foi de total desorientação e caos.

À noite, assisti às entrevistas que Ventura deu em todas as televisões. Detive-me naquela que deu à SIC-Notícias, durante a qual, um pivot visivelmente irritado, provavelmente com saudades dos tempos em que se ria ao lado de Louçã enquanto este fazia piadas com o Holodomor, insistia em calar o líder do Chega e as suas perguntas. O problema é simples: tirando alguma retórica inflamada, o líder do Chega fez todas as perguntas certas. Não é por serem feitas por Ventura que devem ser desvalorizadas. Porque é que o governo não comunicou com os portugueses? Porque é que o governo não enviou um SMS de emergência a todos os portugueses a explicar a situação? Os sistemas de comunicações e de electricidade não são autónomos e não deveriam ter redundâncias? Em caso de catástrofe, as autoridades ficam sem possibilidades de contactar os cidadãos? Os portugueses podem confiar no Estado? Estas perguntas colocadas pelo líder do Chega são todas válidas e muito importantes. Infelizmente, a comunicação social escolhe sempre o silêncio e a cobertura ao governo do dia. Vai ficar tudo bem.

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