observador.ptObservador - 30 abr. 00:20

Crónica em três tons

Crónica em três tons

Ventura sabe que um dia vai ter que dar alguma coisinha aos seus 49 oficiantes ateus “desta” democracia, mas não sabe como. Mesmo que vá subindo a escada dos votos.
Real

1 Não saber? Mas como não saber se sabemos sempre tudo? Todos ao mesmo tempo, globalmente e ao segundo?

Não saber, não comunicar, não ser comunicado? Verbos arrumados na história, coisas do outro mundo. Do de antes. A estranheza era tão imensa como um oceano. Não cabia num dia. E foi a rádio, a “velhinha” rádio, formidável companheira e igual a nenhuma outra, que nos amparou aquela estranheza, sem referências, nem identificação.

E a luz veio ao pôr do sol. Acertadamente.

Dizem que Luís Montenegro tem sorte. Talvez. Mas o que por estes dias se viu foi acerto no ofício.

Irreal

2 Pior é difícil? A pergunta ouve-se em vários círculos alusiva ao que aí ficou: o “apagão” e a pré-campanha legislativa. Nada têm obviamente a ver uma com a outra, o “espírito” foi parecido.

A partir de anteontem à noite mas sobretudo no dia de ontem, o que se ouviu – oposições e parte da media – foi de estarrecer. Da asneira à solta à obsessão com a afanosa procura de “culpados”, os empurrões para que fossem “do” Governo, senão do próprio governo inteiro: com o maestro da orquestra governamental a reger a grande “Sinfonia do Apagão”, da sua autoria.

A asneira à solta, sim.

Quando se substitui a pergunta pela acusação; e quando o argumento principal é a suspeita, o insulto ou a irracionalidade, o jogo democrático está subvertido.

A minha grande perplexidade é porém outra: será que o eleitor comum se revê, ou coincide com a conclusão do líder da oposição e candidato a Primeiro Ministro sobre o “apagão” ibérico? Esta conclusão, por exemplo: “Faltou uma voz de comando e de serenidade”? (Onde, em quê? Que prejudicou ou agravou?)

Outra: “ o Governo falhou e devia ter usado rádio, de hora a hora, para tranquilizar populações”. E numa adenda à sua própria conclusão política, Pedro Nuno Santos conclui sem sombra de dúvida, como se tivesse passado pelo mesmo: o “mais grave foi que também tivemos apagão no governo central”.

O mais grave?

Pode ser que eu me engane mas a pergunta não me surge como despicienda: o eleitorado revê-se nisto? E adere às amostras de ignorância ou de má-f�� – abundantes, ambas – distribuídas ontem pelo ar do tempo oposicionista?

3 Pré campanha mortiça; promessas económicas de amanhãs que cantam; muito acinte, pouca substância; temas pescados na espuma dos dias e não no perigo dos dias; flagrante desfocagem – continuará ? – entre a comezinha visão doméstica com que nos entretiveram e a inquietante realidade do mundo como ele está. Cansaço? Também. Um cansaço triste. Fosse nos desinspirados debates televisivos, fosse na comemoração parlamentar do cinquentenário da Constituição: pouca convicção, modesto brio, fartas as culpabilizações recíprocas (e por parte de mais do que de menos, um indecoroso uso e abuso da figura do Papa Francisco – foi preciso ouvir para acreditar). Excepção para o Presidente da República. Se as palavras surpreenderam pela escolha do conteúdo – onde estava o jovem deputado Marcelo que em 1975 se sentou naquele mesmo parlamento inaugurando uma nova história política no país? – o seu discurso brilhou na construção da forma e da substância: na fluência e ritmo do verbo e na inteligência da sua devoção ao Papa Francisco.

4 Os debates? Por partes:

  1. Resistirá “este”(?) Pedro Nuno Santos (o dos debates) à sua própria natureza? Que caminho quis sinalizar com o uso da “moderação”? Para que escolhas aponta um repentino “centrismo”? Se no PS “funcionarem” os votos úteis, que fará o seu líder com eles? Ao menos a imprevisibilidade está intacta: afinal já não há CPI (mas ontem havia, com as consequências que se sabe).
  2. André Ventura, dividido entre o seu asco ao vasto perímetro pluripartidário e liberal que é o nosso, e o terror de não saber o que fazer de si mesmo e de 49 deputados, se lá não entrar, Ventura agitou-se. Fê-lo deploravelmente, entre o caos e a histeria (o que foi particularmente visível no seu debate com Luís Montenegro, et pour cause). Agarrado à emigração como a uma bóia e ao retórico assassinato de meio século português (onde teve protagonismo, se encostou a quem podia e cultivou ambições).
    Ventura sabe que um dia vai ter que dar alguma coisinha aos 49 oficiantes ateus “desta” democracia, mas não sabe como, nem quando. Sim, mesmo que vá subindo a escada dos votos.
  1. Luís Montenegro talvez não pudesse estar no seu melhor após a exaustiva e causticante saga “Spinumviva”, que logo de início tratou com menos apuro discernimento e cuidado do que ela mereceria (acho eu). Um erro aliás logo ferozmente devorado pelo gáudio e apetite das oposições. Isto dito, a diferença entre Montenegro e o resto dos líderes-debatentes-televisivos, não me parece uma fantasia: na serenidade, no comedimento, na razoabilidade, no saber do que fala. Na racionalidade política com que usa e pratica a própria política. Falta o grande debate.

Ouço dizer que Luís Montenegro leva vantagem. Não sei. Mas há algo que o país sabe: Montenegro governa há ano e meio, Pedro Nuno Santos esteve lá durante muito tempo, com altas responsabilidades – que hoje acusa não existirem nos seus sucessores – e o seu partido morou oito anos no governo. A diferença assustaria qualquer líder, mas o líder do PS não se assusta: é ele quem assusta.

Mas veremos.

Transcendente

Como um luto pode ser luminoso e como numa desolada despedida esteve o dom da alegria… Passou-se diante dos olhos do mundo no último sábado, na Praça de S. Pedro onde, encenado pela milenar sabedoria da Igreja, tudo esteve certo no derradeiro adeus ao Papa Francisco: a profundidade do verbo, o recolhimento, a dignidade. A solenidade. Os substantivos talvez não casem com este latino vivaço, olhar brilhante, sorriso aberto, sempre próximo do “outro”, que fez do Evangelho um mapa e da Igreja um “hospital de campanha”. Mas tudo assim se passou: soleníssimo – não poderia ser de outra maneira –; e sentidíssimo: o mundo quis estar presente.

Crentes e não crentes unidos numa união planetária, em nome de um pastor que interpelou uns e outros através do seu legado: foi mais longe do que os autores do permanentemente aberto caderno reivindicativo insistem em não reconhecer; levou a Igreja para fora das suas portas, atemorizando “instalados” que foram preferindo etiquetá-lo a segui-lo.

Entre duas “alas” porventura excessivas e nada generosas entre si – e nunca esquecendo os do “meio da ponte” – esteve Francisco: presente, atento, e andarilho das sete partidas; interveniente pela palavra em todos os cenários de guerra, activo no diálogo inter-religioso, autor de Encíclicas vitais como mandamentos. Fiel à doutrina, servindo o Evangelho, sabendo lidar com o mundo que levava ás costas, foi o inspiradíssimo militante da Igreja “em saída.”

Após esta jornada memorável na Praça de S. Pedro – e da mais disruptiva fotografia que me lembro dos últimos anos – é com esse Pastor que fico. E com a universalidade da sua misericórdia que levou a todos, todos, todos.

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