Observador - 30 abr. 00:05
O 25 de Abril passou — e Trump não esperou
O 25 de Abril passou — e Trump não esperou
Não são os ecos de Roma, nem os sermões morais de Davos, muito menos as celebrações da Revolução dos Cravos, que hoje moldam o mundo. É Donald Trump.
Enquanto Portugal cumpre mais um ritual anual, revisitando até à exaustão as suas nostalgias de Abril, talvez fosse boa ideia lembrar que o mundo real não espera por nós. Esta semana trouxe-nos duas despedidas simbólicas, bastante mais relevantes para o futuro próximo do que discursos já gastos ou cravos na lapela: a morte do Papa Francisco e a saída de Klaus Schwab da liderança do Fórum Económico Mundial. Duas figuras radicalmente distintas, cada uma delas reveladora das fraturas do nosso tempo.
Sobre Francisco, muito se disse — do elogio apaixonado à crítica demolidora. Não é difícil perceber porquê: o seu pontificado foi, acima de tudo, desconcertante. Tratou com brusquidão os tradicionalistas da Igreja, abdicou ostensivamente de símbolos e adornos históricos que representavam muito mais do que formalidades, sendo pilares reais de unidade e continuidade histórica. Agravou a situação com um acordo obscuro com o Partido Comunista Chinês, cuja lógica profunda continua um mistério, e que muito provavelmente ficará registado como um dos grandes erros estratégicos do Vaticano. E ainda assim, mesmo os seus críticos mais exigentes têm de reconhecer o essencial: Francisco regressou continuamente ao núcleo mais radical e exigente da fé cristã — o amor absoluto a Cristo. É isto, no final, que fica e que importa recordar.
Klaus Schwab representa outra despedida, muito diferente, mas igualmente simbólica. Schwab protagonizou durante décadas uma visão globalista criada em Davos e difundida pelas elites políticas e intelectuais ocidentais, acompanhada de uma retórica de inclusão, transição e sustentabilidade frequentemente distante da realidade prática. Os seus discípulos, embora não oficialmente nomeados, estão por todo o lado. Em Portugal, é o Partido Livre quem melhor encarna essa escola de pensamento: defende o ensino público, mas educa os filhos nos melhores colégios privados; denuncia privilégios, mas circula nos meios que critica; alerta para a sustentabilidade enquanto sobrevoa o planeta em classe executiva. A coerência nunca foi, claramente, o ponto forte deste movimento.
Mas a realidade é que não são os ecos de Roma, nem os sermões morais de Davos, muito menos as celebrações da Revolução dos Cravos, que hoje moldam o mundo. É Donald Trump, novamente sentado na Casa Branca, que determina a agenda global.
Como recentemente referi nestas páginas, as tarifas impostas por Trump sobre produtos chineses, que chegam agora ao limite insustentável dos 145%, são apenas sintomas visíveis de algo muito mais profundo: o modelo económico global das últimas décadas está em rutura. O desequilíbrio entre a dívida americana e as exportações chinesas não é sustentável indefinidamente. Trump sabe-o bem, mas o método errático, contraditório e impulsivo que tem escolhido para abordar esta questão gera uma volatilidade perigosa, com danos reais para os mercados, para a confiança económica e, consequentemente, para os próprios americanos.
Mas, se as tarifas dominam as manchetes, a verdadeira guerra estratégica de Trump é outra: a supremacia tecnológica na Inteligência Artificial (IA). Trump e os seus conselheiros entenderam algo crucial, frequentemente ignorado por muitos líderes europeus, incluindo os portugueses: o controlo da IA não é apenas um assunto económico ou comercial, é uma questão vital de segurança nacional. Elon Musk, voz influente e escutada em Washington apesar das suas ambiguidades, foi claro ao afirmar que as próximas guerras não serão disputadas entre exércitos tradicionais, mas entre sistemas avançados de inteligência artificial. Quem dominar a Inteligência Artificial Geral (AGI) terá não apenas poder económico, mas controlo estratégico sobre o século XXI.
É nesta lógica que se percebe melhor a aparente incoerência da estratégia geopolítica americana recente: a renovada pressão sobre o Canal do Panamá, o interesse pela Groenlândia, a presença estratégica nas rotas árticas ou os novos acordos com África. Não são apenas questões económicas. São jogadas de antecipação para um conflito estratégico que a administração Trump considera inevitável ou, pelo menos, altamente provável. Neste ponto específico, o diagnóstico americano não é inteiramente errado. O erro é o método escolhido para o enfrentar: impulsividade, caos comunicacional e decisões erráticas criam um risco sistémico perigosamente elevado.
Do outro lado do Pacífico, a China observa tudo com uma paciência estratégica milenar. Pequim aposta na velha fórmula de deixar que sejam os próprios mercados americanos — sensíveis, instáveis e altamente reativos — a travar Trump com mais eficácia do que qualquer confronto diplomático direto. A economia americana, apesar da sua aparente robustez, repousa numa confiança muito mais frágil do que gosta de admitir: fé no dólar, na solvência federal e na estabilidade dos mercados. Um passo em falso pode desfazer tudo isto com impressionante rapidez.
Trump não é um Messias, nem um vilão absoluto. É sobretudo uma figura disruptiva, que dificilmente desaparecerá após deixar a presidência. O paradigma do «America First» não é um capricho passageiro: ameaça tornar-se a nova regra da política internacional. Trump acertou na identificação da ameaça tecnológica chinesa, mas errou na forma como a está a enfrentar. O perigo, agora, é o preço a pagar pelos seus erros ser demasiado alto — não apenas para os Estados Unidos, mas para o resto do mundo.
Celebrar o passado é legítimo — e Portugal tem uma longa tradição em acreditar que o passado resolverá o futuro. Mas enquanto nos entretivermos com comemorações cíclicas e discursos gastos, corremos o risco de ignorar o essencial. Porque, quer gostemos ou não, são os EUA que dominam hoje o jogo geopolítico. E Portugal precisa, com urgência, de articular o seu lugar no mundo com clareza e autonomia — ninguém o fará por nós. Muito menos Bruxelas.