publico@publico.pt - 17 jun. 08:00
Desertificação: a crónica de um país que seca por dentro
Desertificação: a crónica de um país que seca por dentro
Desertificação é a lenta agonia do solo. Sem políticas públicas sólidas, conhecimento aplicado e compromisso com o território, a terra continuará a morrer – e com ela comunidades inteiras.
O Dia Mundial de Combate à Seca e à Desertificação foi instituído pelas Nações Unidas em 1994 e celebrado pela primeira vez no ano seguinte, a 17 de junho. Trinta anos volvidos, nunca a sua evocação foi tão necessária e, ao mesmo tempo, tão desoladoramente simbólica. Estes fenómenos afetam diretamente cerca de 250 milhões de pessoas e mais de um terço da superfície terrestre.
Convém esclarecer que a desertificação não é o alastrar dos desertos, nem a saída em massa das populações para zonas mais verdes (essas vêm depois). Desertificação é a lenta, quase impercetível, agonia do solo. É a erosão da sua fertilidade, a perda contínua da cobertura vegetal, a morte silenciosa do que se esconde sob aquilo que já se revela visivelmente moribundo...
As causas são conhecidas, repetidas e banalizadas, como o menu de um restaurante demasiado folheado: desflorestação, sobrepastoreio, mobilização excessiva dos solos, negligência dos seus ecossistemas microbiológicos, e claro, as alterações climáticas. E, por trás de tudo isto, a personagem principal: o ser humano. Aquele que tudo explora, que tudo exige, mas pouco devolve.
A seca, que outrora foi excecional, tornou-se num fenómeno estrutural. Deixou de surpreender para se tornar previsível. Atualmente, um quarto da população mundial vive sob escassez hídrica, com a qualidade da água em declínio, tanto para a irrigação como para uso doméstico. Cerca de 70% das áreas agrícolas em zonas áridas estão em risco de colapso. E quando os campos secam, secam também as aldeias. As pessoas partem. Para onde podem... como podem...
África continua a ser o continente mais atingido, mas ninguém escapa. Nem os Estados Unidos, nem a China, nem a Espanha. Nem Portugal, que entre fogos, monoculturas e abandono parece ensaiar uma espécie de suicídio agrário. A seca avança, a desertificação instala-se, de baixo para cima, do interior para o litoral, e o país assiste como quem vê as ondas subir: com espanto e sem escapatória.
A resiliência dos sistemas agrícolas está em declínio. O apoio técnico às populações é episódico, disperso e tímido. E a política, essa entidade quase literária, encontra-se mais árida do que os solos que devia proteger. Faltam visão, estratégia e ciência aplicada ao território. Já ninguém quer ser agrónomo e dos bons. E já ninguém representa, de forma genuína e desinteressada, a agricultura e o desenvolvimento rural. Enquanto isso, a Europa deslumbra-se com a sua biodiversidade de catálogo, onde o verde se fotografa melhor do que se cultiva.
Se os anos noventa do século passado e a primeira década deste século foram marcados pela desindustrialização, estas segunda e terceira décadas são, sem dúvida, as da desagriculturização. Um processo tão silencioso quanto devastador. É urgente reconhecer a seca e a desertificação como prioridades políticas, ambientais e sociais. Falar de transição ecológica sem falar de regeneração dos solos é como falar de nutrição sem falar de alimentos. Precisamos de práticas agrícolas adaptadas, de culturas resistentes ao stress hídrico, de educação ambiental enraizada nos territórios e de políticas que façam mais do que subsidiar o abandono.
Não basta assinalar datas no calendário. É preciso agir com determinação e exigir políticas públicas à altura da gravidade. Dar voz aos territórios mais ameaçados, apostar na terra e em quem a trabalha. O futuro exige compromisso, visão e responsabilidade partilhada. Não se compadece com panaceias nem lugares-comuns, muito menos com promessas de ação que convivem com a manutenção de subsídios que corroem a robustez de políticas públicas eficazes.
Mas, para já… ficamo-nos por mais um post institucional, uma sessão solene e, com sorte, uma fotografia num campo seco com uma legenda esperançosa. Porque isso, ao contrário da água, ainda não nos falta.