observador.ptObservador - 18 jun. 00:07

Nem todos os barcos chegam ao cais

Nem todos os barcos chegam ao cais

Na jangada que voga ao grado da corrente e no saveiro que flutua no rio de madrugada, também há anelos e esperança. O tempo muda, a treva é efémera. Um dia, a névoa levanta.

��Porque aquilo que fiz com a minha única, pequena, bela vida — foi perdê-la / numa maré de vitórias.»
O Tempo é uma mãe, Ocean Vuong (Relógio d’Água)

Quase tudo na vida se decide num segundo, num improviso mais ou menos brusco do destino, que desponta sem avisos nem sinais, indomável salteador de caravanas. À sorrelfa, suspende a jornada e a parança, levando-nos mapas e planos da algibeira. Impassível, deixa-nos prostrados em estradas sinuosas e desertas, vassalos solitários entregues ao embuste e à rapina.

Talhamos o futuro com o aprumo de um escultor devotado, gestos seguros, nunca cansados, a goiva placidamente colada às mãos. E urdimos um sem-fim de narrativas com o esmero de um velho cineasta, sempre pronto a repetir, sempre pronto a renascer, porfiando até destilar o último átomo da realidade no planisfério dos sonhos e da imaginação. Examinamos cada lugar em busca do melhor ângulo, da melhor imagem, de um feixe de luz imune ao anoitecer, a câmara pousada no desvão sombrio do cenário.

Indiferente às subtilezas do pensamento e da vontade movediça, esse amanhã por que ansiamos, debruado com os dedos em janelas largas e embaciadas, nem sempre vem. Ou simplesmente demora, detido em noites brumosas, dédalos lúgubres, portas cerradas. E de nada vale procurá-lo em avenidas soalheiras, atalhos desembaraçados, ruas apinhadas de gente sem pátria nem passado. Nem sequer em portos de navios armados à espera de um meneio da Lua, para soltar amarras e zarpar. Ou no chão ladrilhado de praças históricas, centenárias, em que a fronde de álamos e castanheiros é sombra, taipa e telhado, e onde as estátuas, confidentes linguareiras, contam histórias à luz do dia e se transformam em sentinelas ao sol-pôr.

Por vezes, apenas nos resta deter a demanda e aguardar o resgate, o instante silente e indizível, que debalde tentamos agarrar, em que os dados rodam livremente sobre a mesa, subjugados ao magnetismo bravio da fortuna. E então, submissos ou resignados, guardamos a bússola, o diário e a chave, porque o futuro imprevisto deixa de ser mera conjectura. Abrimos os olhos, está prestes a raiar.

Os pitagóricos, devotos do conhecimento, cultores da música, dos números e da geometria, chamavam kairós à oportunidade, ao momento indescritível e fugaz que se não controla nem ausculta, que não vemos partir nem chegar. Distingue-se do krónos, que escorre pelos dedos e oxida no corpo, envelhecendo-o; que se derrama nos vasos da clepsidra e se evade na areia fina que passa a corredoura estrangulada da ampulheta. E ainda do aion, o tempo infinito, que Heráclito dizia ser uma criança a brincar, ou não reflectissem os olhos de quem ergue castelos na areia a serena vastidão do mar que os inundará.

O kairós não se adivinha nem se repete, não se divisa no horizonte nem se guarda no fundo da gaveta para um dia ensolarado, para uma noite de exílio ou solidão. E jamais se multiplica como as horas, outrora personificadas por Dice (Justiça), Eunómia (Disciplina) e Irene (Paz), trindade helena que presidia às estações e ao ciclo infinito da flora, assegurando a harmonia social. Representantes do tempo circular e das fases da vida, as Horas, filhas de Témis e Zeus, irmãs das Moiras (os Destinos), atalaiavam as portas da mansão divina. Sequazes de Afrodite e Dionísio, deleitavam ainda Pã, deus dos bosques, com a indelével presença.

E, sem ninguém dar conta, roubamos o amanhecer.

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