observador.ptObservador - 18 jun. 00:10

Os silêncios e as cumplicidades da indústria audiovisual

Os silêncios e as cumplicidades da indústria audiovisual

Por detrás do brilho da indústria audiovisual acoberta-se uma estrutura marcada por desigualdades, dinâmicas de poder opressivas e práticas enraizadas de violência de género.

Quando ligamos a televisão, deixamo-nos levar por histórias que nos emocionam, inspiram e fazem pensar. Mas esquecemo-nos de olhar para quem está por detrás das câmaras. Atrás do brilho e da perfeição que vemos no ecrã esconde-se, por vezes, uma realidade sombria, muitas vezes silenciada, a que se dá o nome de indústria audiovisual, não raramente palco de desigualdades, abuso de poder e violência de género

Muito mais do que luzes e câmaras, a indústria do audiovisual — que inclui a produção, distribuição e exibição de filmes, séries, programas de televisão e conteúdos digitais — envolve milhares de profissionais, dos quais apenas memorizamos os rostos mais visíveis, uma pequena elite que o público idolatra.

Contudo, por detrás do brilho e da perfeição que nos é apresentada acoberta-se uma estrutura marcada por desigualdades, dinâmicas de poder opressivas e práticas enraizadas de violência de género.

Veja-se o relatório recente da CIMA – Asociación de Mujeres Cineastas y de Medios Audiovisuales, em Espanha, que revela dados inquietantes: mais de 60% das profissionais do sexo feminino, entre os 20 e os 50 anos, afirmam ter sofrido algum tipo de abuso sexual ao longo das suas carreiras. Destas, 92% nunca denunciaram os abusos. Apenas 6,9% das vítimas optaram por denunciar o abuso às autoridades. E 64,4% acreditam que essas denúncias não são levadas a sério, sendo os agressores frequentemente protegidos, enquanto as vítimas são afastadas de projetos, ignoradas para novas oportunidades ou mesmo empurradas para fora da carreira…

O medo de perder o emprego, represálias e a ausência de apoio jurídico, tanto por parte das empresas como do sistema judicial, são as principais causas apontadas para a não denúncia.

Este padrão de impunidade está longe de ser exclusivo de Espanha. Em Portugal, embora falte um estudo semelhante, é difícil imaginar que a realidade seja muito diferente. A proximidade cultural e estrutural entre os dois países faz supor consequências semelhantes.

Como em quase tudo na vida, as repercussões demoram mais anos a vir à tona. Muitos ainda não compreendem o “caso Weinstein”, e outros mantiveram-se à margem do cataclismo que foi o movimento MeToo, tanto nos EUA como, mais tarde, em França.

Enquanto perdura o silêncio, continuamos a assistir a tudo de fora. As denúncias são escassas, e a conversa sobre assédio e abuso sexual no setor audiovisual ainda é tímida. O silêncio continua a funcionar como escudo, protege os agressores, isola as vítimas e perpetua o abuso.

A violência sexual, como sublinha o relatório espanhol, pode ocorrer em qualquer fase da atividade profissional: desde a formação académica à pré-produção, seleção de elenco, ensaios, filmagens e pós-produção. E, sublinhe-se, não se trata apenas de sexo — trata-se de poder. O agressor procura imobilizar a vítima física e emocionalmente, anulando a sua capacidade de reagir, mergulhando-a em vergonha e impotência.

A ausência de políticas internas eficazes, códigos de conduta claros, canais seguros de denúncia e, sobretudo, de uma cultura de responsabilização, cria um ambiente propício ao abuso.

Em Portugal, o Código do Trabalho prevê a proibição expressa do assédio no local de trabalho (artigo 29.º), e a Lei n.º 73/2017 reforça o quadro legislativo para a prevenção da prática de assédio.  Ainda assim, a aplicação prática destes dispositivos é escassa, e o sistema continua a falhar no apoio às vítimas.

É, pois, urgente implementar planos de igualdade nas empresas do setor audiovisual, conforme previsto na Lei n.º 62/2017, de 1 de agosto, que estabelece a obrigatoriedade de medidas de igualdade de género na administração pública, estendendo-se também às entidades com atividade económica relevante. Tais planos devem conter medidas concretas para a prevenção e combate ao assédio, formação obrigatória em igualdade de género e mecanismos de acompanhamento independentes.

Mas não basta a lei no papel. É preciso implementar políticas internas eficazes, criar códigos de conduta obrigatórios, linhas de denúncia anónimas e protegidas, e, acima de tudo, uma mudança de mentalidade. Nenhum talento floresce num ambiente de medo.

Se a produção audiovisual tem a capacidade de imaginar futuros alternativos, então deve também assumir a responsabilidade de construir um futuro melhor no qual, todas as pessoas, independentemente do género, possam estar no mesmo palco, a trabalhar com liberdade, dignidade e segurança.

O silêncio pode até ser parte do cinema, mas nunca pode ser parte da Justiça.

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