publico.pt - 18 jun. 17:51
A década de Trump
A década de Trump
Notas made in USA sobre a vida americana. Pedro Guerreiro escreve a partir dos Estados Unidos.
Há 10 anos, a 16 de Junho de 2015, Donald Trump desceu as escadas rolantes douradas do átrio da sua torre em Nova Iorque e declarou a sua candidatura à presidência norte-americana. Os primeiros segundos da década de Trump ficariam logo marcados por uma mentira. "Uau, mas que grupo de pessoas! Milhares!", diria o milionário republicano sobre o que os jornalistas na altura descreveram como meras dezenas de apoiantes estrategicamente colocados para emoldurar a imagem para a televisão.
Como argumentava Jeff Sharlet numa entrevista recente ao PÚBLICO, o trumpismo define esta era como o reaganismo definiu o período histórico anterior, condicionando a acção e o discurso de apoiantes e de adversários. Se o liberalismo anti-Estado, uma proposta controversa mas inteiramente legítima, era a marca de Reagan, a corrosão de todas as normas e instituições é o legado de Trump.
Com Trump, já não é apenas o Estado o inimigo; é também a universidade, a ciência, a imprensa, a comunidade internacional, a solidariedade global, o comércio livre. É a própria Constituição dos Estados Unidos, a justiça, o processo eleitoral, o Congresso pilhado a 6 de Janeiro de 2021 e qualquer sinal de dissenso no partido ou fora deste. É também qualquer compromisso elementar com a decência e a verdade. As metástases internacionais são facilmente reconhecíveis, do Brasil a Portugal.
Reagan queria libertar o mundo do comunismo para moldá-lo de acordo com a sua ideologia; Trump dispensa qualquer ideal ou sentido de missão e vê o mundo como uma fonte de enriquecimento pessoal, já nem sequer nacional, misturando a diplomacia com os negócios da família, como já o fazia com a governação do país. Os filhos correm o mundo a assinar acordos de negócios imobiliários e de criptomoedas com os países que tentam libertar-se das taxas aduaneiras decretadas em Abril. O pai cria um novo visto gold com o seu nome e rosto para quem quiser pagar cinco milhões de dólares para viver nos EUA, ao mesmo tempo que prende e expulsa imigrantes pacatos a residir no país há décadas. Trump "preside a uma cultura de corrupção", denuncia o New York Times em editorial.
O poder da maior potência militar mundial é agora o poder de um só homem. O mundo suspende por estes dias a respiração à espera de saber o que decidirá Trump sobre o eventual envolvimento dos EUA numa nova guerra em larga escala no Médio Oriente, depois de ter feito campanha pelo contrário, pela paz no mundo e contra o intervencionismo norte-americano.
"Não com muita disposição para negociar", dizia na segunda-feira um Trump birrento, que abandonou a reunião do G7 no Canadá com comentários deselegantes sobre os aliados para publicar horas depois, na sua própria rede social, um "continuem ligados", como um locutor que anuncia o próximo episódio de uma telenovela. Trump já nem ouve alguns dos seus apoiantes internos.
Como os observadores atentos previam, Trump II é uma versão vingativa e sem amarras de Trump I (2017-2021). Se no plano internacional a segunda era Trump é marcada pelo avanço da guerra, a destruição de alianças, a aproximação a regimes autoritários, a incerteza nos mercados e a perturbação do comércio global, o plano interno é pautado pela aceleração do processo de corrosão das instituições e da confiança societal.
Cientistas substituídos por conspiracionistas em organismos reguladores das vacinas ou do ambiente. Jornalistas trocados por propagandistas na Casa Branca e no avião presidencial. O homem mais rico do mundo encarregue de cortar assistência vital às pessoas mais pobres do mundo. Um administrador da protecção civil que não sabia que havia uma temporada de furacões. Um nomeado para a autoridade de aviação e navegação aérea que durante anos fingiu ser piloto. Todo um Governo recheado de estrelas da Fox News e de figuras submissas, agora sem qualquer "adulto na sala" que contrarie o Presidente ou faça contenção de danos.
A administração central e os sectores dependentes paralisados por uma caça aos gambuzinos de "fraude, desperdício e abuso" que, afinal, não existia ou tinha pouca expressão. Uma proposta de orçamento que todas as análises independentes alertam que vai aumentar o défice federal, retirar a cobertura de saúde a milhões de norte-americanos, aumentar os impostos à classe média e reduzi-los para os mais ricos.
A América comprou um pastiche de Presidente anunciado na televisão e nas redes sociais, como qualquer produto atractivo mas de duvidosa utilidade promovido nas televendas da madrugada. Fê-lo em 2016 e, depois de um interregno mal gerido pela oposição democrata, fê-lo novamente em 2020.
A burla tem vários cúmplices. Um Partido Republicano que trocou os princípios pelo poder. Um Partido Democrata que não tem sabido estar à altura da sua responsabilidade histórica. Uma imprensa que tratou como normal o que era extraordinário. Um Congresso e um Supremo Tribunal que escancararam as portas do financiamento das campanhas eleitorais. Um sector tecnológico que permitiu a transformação das praças públicas virtuais em megafones de extremistas e que agora beija a mão a Trump a troco da promessa de desregulação e de negócios com o Estado.
Não se pode, contudo, desresponsabilizar o próprio eleitorado. Trump capitalizou os piores instintos de milhões de eleitores porque estes já estavam lá. O ódio em relação aos imigrantes e minorias. O ressentimento em relação às pessoas mais pobres e fragilizadas a que o Estado prestava apoio limitado. A desconfiança militante em relação às instituições. Uma ignorância orgulhosa que o torna permeável à manipulação e a promessas esdrúxulas de soluções simples para problemas complexos. Não é um problema exclusivamente norte-americano.
Há promessas que estão a ser cumpridas. Imigrantes deportados, hispânicos amedrontados em casa, minorias apagadas da vida pública, cientistas despedidos, jornalistas ameaçados, universidades tomadas de assalto e os militares nas ruas. O outro lado da moeda será revelado de seguida, sobretudo com a aprovação e entrada em vigor do orçamento em discussão em Washington: uma flagrante manobra de transferência de riqueza dos mais pobres e da classe média para os mais ricos, a perda de cobertura de saúde para percentagens de dois dígitos da população (o cálculo varia conforme o estado) e a subida dos custos associados para os restantes norte-americanos. As soluções simples não vão resolver os problemas dos norte-americanos.
Há uma outra América. Muitas Américas dentro desta América, aliás. Milhões de norte-americanos saíram às ruas este fim-de-semana para protestar contra a deriva autoritária e a perseguição a imigrantes e minorias, para dizer que na América "não há reis". De momento, resta-lhes essa rua e o plano inclinado das redes sociais. Mas também saiu o ódio, com o assassinato de uma congressista estadual democrata no Minnesota e o atropelamento de manifestantes em vários pontos do país.
Haverá uma primeira oportunidade de resposta nas urnas nas intercalares de 2026 e outra nas presidenciais de 2028. Resta saber em que condições decorrerão essas eleições, e que Partido Democrata se apresentará a votos. A sua "alma" também está em disputa por estes dias, como se verá na próxima terça-feira, nas primárias democratas para a câmara de Nova Iorque — um duelo entre a ala centrista, institucionalista e elitista de Andrew Cuomo, que se demitiu de mayor em 2021 sob suspeita de abusos sexuais, e a ala socialista e populista encabeçada pelo neófito Zohran Mamdani, uma nova estrela da constelação AOC-Sanders.
Mas qualquer cenário de reviravolta é, neste momento, um exercício de wishful thinking. A América mudou a partir de 16 de Junho de 2015. Dez anos depois, essa América que Trump quis "fazer grande outra vez" é hoje paradoxalmente mais pequena, e o mundo terá de aprender a viver com ela — e sem ela também.