publico@publico.pt - 18 jun. 14:59
Os nomes delas no título e os criminosos à sombra
Os nomes delas no título e os criminosos à sombra
Ele (o criminoso) perde o nome nos media e é “o companheiro”, “o marido”, “o ex-namorado”, “o suspeito”, “o arguido”, “o agressor”.
Quem consulta o arquivo de um jornal centenário, percebe facilmente como as mulheres, mesmo que reconhecidas publicamente na sociedade, foram invisibilizadas em manchetes e títulos, até quando elas eram o foco da descrição da notícia. Essa evidência ainda hoje é perpetuada, no caso flagrante da adoção do masculino, como género neutro em títulos, cujos artigos falam unicamente de mulheres. Curioso, não? Mas há uma exceção, no que toca ao crime e ao jornalismo que dele resulta, a mulher aparece qual estrela mediática, com o seu nome, porventura judicialmente atribuído ao caso que se procura desvendar, em grande destaque, além da exposição das suas fotografias, retiradas mormente das redes sociais. E eles, os agressores, à sombra.
Elas morrem duas vezes, morrem pelas mãos dos homens e na violência da narrativa que lhes é dirigida. Quando uma figura pública, e ainda por cima uma mulher com visibilidade e influência, afirma que: “Ela pôs-se jeito”, trata-se da reprodução (ainda que inconsciente) da velha lógica que subsiste enraizada na nossa sociedade, de que ela, a mulher, já sepultada ou desaparecida, escolheu mal o parceiro, não se soube proteger, saiu com quem não devia, bebeu o que não podia, etc., etc..
É um retrato perverso, a leitura de que uma mulher "se põe a jeito" para morrer. Mais preocupante ainda é quando se aligeira e banaliza a violência contra mulheres, e o horror descamba num riso nervoso ou despreocupado, transformando o sofrimento em episódio ligeiro. Como se as outras, as que estão cá ou que nunca experienciaram violência machista, soubessem bem que comportamentos adotar para garantir a sobrevivência, lendo os sinais ou adivinhando um desfecho trágico. Estas situações mostram que a violência doméstica é material noticioso sensível e quando entregue a entertainers dá asneira.
Entre os muitos casos que ‘entretêm’ os espectadores, o oráculo na televisão mostra em loop “caso da grávida da Murtosa”, saciando a curiosidade dos telespectadores durante longas manhãs e tardes e onde não se hesita em mostrar o rosto de Mónica Silva. Cabelo loiro, a sorrir, de aparelho nos dentes. O foco repetido na imagem dela que enche programas e noticiários fazem com que aquela figura nos pareça próxima. Nos jornais e revistas eis alguns dos títulos: “Imagens inéditas de Mónica Silva no dia em que faria 35 anos”; “Caso da grávida da Murtosa: Inspetor da PJ revela detalhes da pegada digital da vítima e do arguido”; “Pedida pena máxima para suspeito da morte de Mónica Silva”; “Grávida da Murtosa só saía com o arguido, afirma irmã gémea”.
Não se trata apenas de simples escolhas editoriais, aliás, observamos que a lavagem pública da roupa suja e devassa da vida íntima é sobretudo delas, mesmo depois de assassinadas de forma vil. Eles foram, entretanto, diluídos em categorias genéricas que fazem com que o leitor ou telespectador, não saiba dizer o nome dos agressores que todos os dias aparecem na televisão. Ele (o criminoso) perde o nome nos media e é “o companheiro", "o marido", "o ex-namorado", "o suspeito", “o arguido”, “o agressor”.
Mesmo com as mulheres mortas e não estando cá para contar a história, a violência contra elas permanece, com os seus nomes a serem manchetes de capas de jornais, acompanhadas de fotografias que as mostram como bem entenderem os autores ou as autoras desses artigos, além dos discursos machistas de que continuam a ser alvo.
É "o caso de Maria", "o homicídio de Catarina", "o feminicídio de Ana" e eles à sombra. Elas têm um nome e rosto, eles são um murmúrio, um vulto...
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990