observador.ptobservador.pt - 18 jun. 21:29

Prejuízos de quase 200 mil euros e uma produtora em lágrimas: o segundo dia do julgamento do caso Anjos/Joana Marques

Prejuízos de quase 200 mil euros e uma produtora em lágrimas: o segundo dia do julgamento do caso Anjos/Joana Marques

Irmãos Rosado chamaram especialistas, família e empresários para provar que comentários negativos sobre a dupla tiveram efeitos psicológicos nefastos e levaram à rescisão de vários contratos.

Vestidos em tons claros, Sérgio e Nelson voltaram a sentar-se lado a lado. Na outra ponta da sala estava Joana Marques, a humorista a quem pedem uma indemnização de 1 milhão de euros por um vídeo satírico publicado nas redes sociais.

Esta quarta-feira, no segundo dia de julgamento do caso Anjos versus Joana Marques, o Tribunal Cível de Lisboa viu desfilar testemunhas dos cantores, a começar por especialistas que analisaram a qualidade da interpretação dos irmãos Rosado do Hino Nacional e deram “pareceres técnicos” sobre os problemas na transmissão da atuação da dupla de cantores numa prova de MotoGP, no Autódromo Internacional do Algarve, em abril de 2022.

As fileiras de cadeiras de madeira da sala de audiências nunca estiveram tão preenchidas. Ana Galvão, locutora da Renascença e colega da humorista no programa Três da Manhã, e o humorista José Diogo Quintela, foram algumas das figuras públicas que assistiram a parte da sessão.

Testemunhas de Anjos falam em vídeo “catastrófico” e “montado para atingir um fim”

Os Anjos nunca desafinaram ao cantar o Hino Nacional. É essa a opinião do maestro Nuno Feist (irmão de Henrique Feist), o primeiro a depor neste “dia 2” e incumbido de explicar porque é que os Anjos não desafinaram naquele dia fatídico em Portimão. “Se o ritmo não foi alterado, se a harmonia não foi alterada e se harmonia encaixa, não posso dizer que houve desafinação”, disse. Nuno Feist falou num vídeo “catastrófico” e culpou a equipa técnica. “Se o som tivesse estado a 100% isto nunca teria acontecido, porque eles não estiveram mal”.

O maestro e professor do Conservat��rio foi uma das pessoas trazidas pela dupla de cantores para um “parecer técnico”, nas palavras da advogada. “Isto não são os Anjos que eu conheço”, disse o profissional sobre o vídeo divulgado, explicando que há diferenças entre o vídeo transmitido e o in loco. “Compreendo pelo vídeo a reação que as pessoas estão a ter, mas eu sei que não corresponde à verdade”, continuou.

“Letra”, “melodia”, “ritmo”, “harmonia” foram alguns dos termos usados para considerar porque não houve desafinação. Foi uma técnica de som a “lixar uma performance”, simplificou. “Se o som tivesse estado a 100% isto nunca teria acontecido, porque eles não estiveram mal.”

Sobre a polémica com a palavra “egrégios”, Feist recordou que “estamos a falar de uma gravação ao ar livre”, mas notou que quando o Presidente francês, Emmanuel Macron, esteve em Portugal, durante a interpretação do hino nacional também se escuta “igreijos” e que a gravação está mesmo disponível na página da Presidência. “A partir do momento em que ouço isso numa cerimónia de estado… Não vejo essa importância toda”, desvalorizou.

A opinião é partilhada com Sérgio Antunes, diretor técnico da empresa Media Pro International, que testemunhou pouco depois através de videoconferência, pois reside em Riade, na Arábia Saudita. “Foi uma transmissão desastrosa ao nível técnico”, disse o perito, trazido para mais um “parecer técnico” pela equipa jurídica dos Anjos. “A mistura é muito pouco musical, harmónica, não faz nenhum sentido. Já para não dizer que houve erros de broadcast mesmo, um delay que houve, um loop que é bastante audível.”

O diretor técnico da referida empresa descreveu um “vídeo claramente montado para atingir um fim” e, questionado pela advogada dos Anjos, classificou como tendo o objetivo de “ridicularização”. A advogada de Joana Marques questionou então a testemunha qual é a profissão da acusada. “Podemos dizer que é humorista”, respondeu Sérgio Antunes, levando a advogada a confrontá-lo com a função de uma humorista. Mas o diretor técnico da empresa Media Pro International defendeu que “não devemos difundir e apoiar” humor que vai ferir “pessoas numa situação mais frágil”.

Sendo parte da estratégia da acusação a questão da manipulação das imagens — repetida exaustivamente aqui — os irmãos Rosado chamaram um editor de imagem ao tribunal. João Pedro Ferreira, nesse papel, foi a última testemunha a depor durante a manhã, a pedido de Nelson e Sérgio Rosado. No parecer técnico de Ferreira, que elaborou na forma de texto e que foi mostrado no televisor da sala de audiência, lia-se como os cortes do vídeo publicado por Joana Marques foram “sítios planeados, estratégicos para causar ainda mais impacto à situação”.

Entre pausas para aviões a passar (as janelas estão abertas para aliviar o calor) e ataques de tosse, nem sempre foi audível o que é dito na sala. Depois de um momento quente entre as equipas jurídicas sobre discórdias no número de visualizações de vídeos, lá foi possível ouvir o testemunho do editor de imagem em viva voz. O editor de imagem da TVI defendeu que “inserir imagens fora do contexto causa dano, neste caso é o que aconteceu”. “Se encaixar um plano fora de contexto…”, continua, sendo interrompido pela juíza responsável. “Mas o senhor tem uma profissão séria”, notou. “A Joana tem uma profissão diferente da sua.”

“Cada um de nós tem o nosso próprio negócio e o que não quer é má publicidade e polémica”. Contratos cancelados podem ascender a quase 200 mil euros, alegam

Também pelo tribunal passaram os gerentes de três empresas que terão cancelado contratos de patrocínio com o grupo musical, alegando que foram os comentários negativos e a repercussão do vídeo publicado pela radialista levaram à rescisão de contratos. Para todos, a boa imagem pública dos Anjos ficou comprometida para estar associada às empresas, explicaram.

Foi o caso de Pedro Miguel Ferreira Duque, gestor de empresas, que disse que tinha celebrado contrato com os cantores para dar um “boost” e “alavancar a divulgação da marca” — marca essa que não foi identificada. O contrato celebrado em 2022 incluía um pagamento de cerca de 35 mil euros (mais IVA) à banda, “além de todo o material” que seria dado para a promoção. Só que o contrato acabaria por ser cancelado a 9 de maio, depois do vídeo ter sido disseminado online. “Cada um de nós tem o nosso próprio negócio e o que não quer é má publicidade e polémica”, justificou em tribunal. “Nós representando uma marca [não revelada] que não é nossa e que estamos a representar em Portugal…”. “Não sei no dia 9 de maio o que se terá passado e o que tinha sido falado, mas o tema do conflito entre as duas partes já era latente”, continua. “Achámos que não era benéfico”, resumiu.

Depois de Pedro Duque, seguiu-se Bruno Carvalho. Este empresário na área do desporto começou o depoimento recordando como conheceu os Anjos quando vivia “sozinho” em Angola, onde era transmitida a novela Vingança, da SIC — e cujo genérico era a canção Eu Estou Aqui, da dupla de artistas. Carvalho explicou como firmou um contrato com a Angel Minds para um patrocínio à banda de cerca de 75 mil euros por dois anos (+IVA). Mas também ele acabaria por cancelar o acordo depois de ver um “vídeo com algumas brincadeiras no meio”, nas suas palavras.

“Fui confrontado com isso”, recordou. “Já viste o que se está a passar?”, ter-lhe-ão dito ao mostrar o vídeo que estava na página de Instagram de Joana Marques.

[A polícia é chamada a uma casa após uma queixa por ruído. Quando chegam, os agentes encontram uma festa de aniversário de arromba. Mas o aniversariante, José Valbom, desapareceu. “O Zé faz 25” é o primeiro podcast de ficção do Observador, co-produzido pela Coyote Vadio e com as vozes de Tiago Teotónio Pereira, Sara Matos, Madalena Almeida, Cristovão Campos, Vicente Wallenstein, Beatriz Godinho, José Raposo e Carla Maciel. Pode ouvir o 5.º episódio no site do Observador, na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E o primeiro episódio aqui, o segundo aqui, o terceiro aqui e o quarto aqui]

O empresário disse que ouviu como ia “estar associado” a uma polémica caso aceitasse fazer uma parceria com os músicos. “Na altura teve um impacto grande”, afirmou, recordando os comentários sobre “assassinar o hino”. “Disse: não posso estar no meio disto”, continuou. “Tomei coragem e liguei ao Nelson” — e reproduziu: “Não me leves a mal, mas, com tudo isto que está a acontecer, tenho de olhar para o que pode sobrar para a minha empresa”.

Já depois da pausa para almoço, também Luís Ramos, gerente de uma empresa de produtos farmacêuticos, se juntou ao rol de empresários que diz ter firmado um contrato com os irmãos Rosado, para logo desfazer o negócio. Ramos, que se apresentou como sócio-gerente de uma empresa de “medicamentos de marca própria, inclusivamente alguns originais”, diz que a dita acordou um contrato com os irmãos Rosado que “previa a exploração de imagem dos Anjos” e que incluía, entre outras coisas, “um concerto privado para a nossa empresa, parte técnica, luz, deslocações”, diz. O contrato seria de 85 mil euros (+IVA) por um período de dois anos.

Diz que a escolha dos Anjos para promover a marca recaiu no facto de ser até então uma “banda associada a ações solidariedade”, em particular “contra o cancro da mama”. Só que um dia mudou tudo. “Tudo começou a 24 de abril de 2022”, recorda em tribunal. “Parecia uma bola de neve”, diz. Os comentários multiplicaram-se e ficaram “alarmados”. “Achámos internamente que não fazia sentido para a nossa a empresa ficar associado a esta polémica que estava a existir.”

“Uma coisa boa nunca consegue superar uma coisa má” — e outra vez os limites do humor

Se durante a manhã, com as testemunhas chamadas a depor, o intuito era perceber se os danos financeiros alegados pela dupla Anjos são ou não consequência direta do vídeo humorístico criado pela locutora da Renascença, durante a tarde o tom mudou. O que se seguiu foram testemunhas familiares, depoimentos emocionados e acusações.

Começou com Timi Montalvão, produtora executiva dos Anjos há mais de 20 anos (é da sua autoria o vídeo que foi exibido ontem, terça-feira, que captava a atuação com recurso a um telemóvel) e cujo depoimento foi interrompido por vários segundos devido ao sobrevoo de um avião — algo quem sido recorrente durante os depoimentos de várias testemunhas.

A produtora emocionou-se logo aos primeiros segundos. “[Aquele momento, em Portimão] Ia ser uma grande honra”, disse com a voz embargada. “Foi muito difícil para todos nós porque a cultura foi a primeira a fechar e a última a abrir no pós-pandemia”, continuou. A produtora pediu “desculpa” à juíza responsável por “estar sempre a falar em nós”. “Os Anjos somos todos nós, somos todos uma equipa, uma família. Somos 28 pessoas, 28 famílias, que trabalhamos juntos e vivemos juntos na estrada.”

Montalvão recordou como recebeu os primeiros comentários: “sabíamos que ia passar”, “são coisas do momento”. “Só que no dia a seguir…”, começou por dizer, aludindo à publicação de Joana Marques, com um “vídeo completamente manipulado.” “Não queria acreditar no que estava a ver.”

A produtora diz que a equipa dos artistas procurou “repor a verdade” publicando o clipe gravado no autódromo com o telemóvel. Mas “uma coisa boa nunca consegue superar uma coisa má”, notou. “O vídeo continuou a onda de ódio”, disse, referindo-se ao vídeo publicado por Joana Marques. Aliás, a produtora disse que recebeu mensagens privadas de ódio. “Nunca tinha visto uma coisa destas. Não queiram saber o que é passar por isso”.

Questionada pela advogada dos Rosado, não tem dúvidas: Joana Marques publicou as imagens “com o intuito de prejudicar a nossa carreira”. “Feriu o bom nome, a boa imagem”. “Como é que ela poderia não ter essa noção?”

“Cada vez que se fala neste julgamento, tudo explode novamente”, acabaria por dizer Timi Montalvão. “Cada vez que há notícias sobre o processo Joana Marques vs Anjos, o bullying digital continua”, afirmou. A juíza interpelou-a: as notícias deste julgamento afetam a banda? “Cada vez que se fala neste julgamento. os comentários maliciosos, maledicentes, continuam”, contestou a produtora.

“Quem é que fala disto”, perguntou então advogada? “Os humoristas, a própria Joana Marques”, disse a produtora, ainda que reserve que a humorista o fez “em poucas alturas”. Montalvão alegou que, normalmente, a banda tinha uma média de 40 a 50 concertos por ano e que agora têm “cerca de metade”. E deu como exemplo “um concerto que foi cancelado depois de a Joana Marques ter ido a um programa da SIC”, disse, referindo-se ao talkshow Júlia, apresentado por Júlia Pinheiro, em que a humorista foi convidada ao lado das colegas locutoras da Renascença.

Ao longo de uma hora, Timi Montalvão foi questionada no fim pela advogada de Joana Marques, que perguntou à produtora se sabe a profissão da sua cliente — isto depois de Montalvão ter concedido que, observando o vídeo, “claro que se percebe que foi uma mistura para tentar brincar”. “Humoristas tentam fazer piadas com piada que façam rir”, respondeu a produtora. “E não piadas que humilhem. Isso para mim não é humor, é humilhação pública”, continua. “Eu não gosto desse tipo de humor.”

Montalvão vai mais longe e disse que não se referia apenas à “pseudo-brincadeira ou piada com os Anjos”. “A Joana adora humilhar pessoas”, acusou. “Já tive conhecimento de publicações da Joana humilhar pessoas doentes, a humilhar pessoas deficientes.” As sobrancelhas franziram-se na equipa jurídica da humorista, que logo segredou algo à advogada. “Quais piadas foram essas?”, retorquiu a advogada de Joana Marques. Timi Montalvão contestou: “Não lhe posso precisar neste momento”. A produtora acabaria por voltar ao tema dos limites do humor, desfocando-se de um caso específico e generalizando: “O humor não pode tudo. O humor não pode provocar humilhação pública.”

TIMI

Para o fim ficaram os testemunhos de Sílvia e Andreia Rosado, mulheres de Nelson e Sérgio Rosado, respetivamente, encarregues de falar sobre como o vídeo afetou a vida familiar de cada um. “Eu vi na televisão a performance no MotoGP e não tinha nada a ver. Isto era um vídeo com um propósito de gerar sangue e de ter visualizações”, disse Sílvia Rosado, que acreditava sinceramente que a controvérsia terminaria assim que o marido conseguisse conversar com Joana Marques, e foi isso que explicou aos filhos, de 10 e 15 anos. “O pai não está bem”, recorda-se de ouvir do filho. “Isto tem um efeito no pai.”

“Tive de o começar a adormecer”, apontou em tribunal. “Eu nem sou religiosa”, disse, antes de contar como, à noite, “agarrava nas mãozinhas dele, fechávamos os olhos” e… Faziam uma “meditação”?, perguntou a juíza. Sílvia não concorda com a palavra. Prefere “oração”. O filho, hoje com 13 anos, tinha então 10.

A mulher de Nelson Rosado disse ainda que a filha de 15 anos não consegue ignorar a polémica. “Digo-lhe para ela não comentar, mas é impossível, ela tem redes sociais”, começou por dizer. A também manager afirmou que a filha comentou inclusivamente o post de Joana Marques, mas que “esse comentário foi eliminado”. Tratava-se, disse, de um comentário em defesa do pai. “Pelo menos é um comentário que fica aqui em defesa”, disse, citando a justificação da jovem para comentar a publicação.

Depois de Sílvia, foi a vez de Andreia. A administrativa, casada com Sérgio Rosado, tomou o lugar testemunha, visivelmente emocionada. A mulher de um dos Anjos alegou que “não vale tudo independentemente da profissão das pessoas”. Recordou os episódios de acne do cantor, os rendimentos que “não são os mesmos” e disse que há “coisas graves que só não aconteceram porque temos uma família incrível.” A juíza indagou que “coisas” seriam essas. Uma separação à vista, porventura? “A nível psicológico eles ficaram muito afetados”, contestou a testemunha.

Andreia recordou ainda um episódio passado no shopping em que “foram fazer compras para a casa”. “Estava perto dos meus filhos e uma pessoa ao meu lado, a poucos metros, começou a verbalizar e a gozar com o Sérgio”, contou. Diz ter ouvido só “palavras soltas”: “Se ele cantasse agora o hino”, “um milhão”. Rosado admitiu que teve de “intervir”, escusando-se a mais detalhes.

A próxima audiência está marcada para 30 de junho, segunda-feira, às 9h30. Deverão ser ouvidas quatro testemunhas requeridas pela ré, entre elas o humorista Ricardo Araújo Pereira e o radialista Fernando Alvim. Ainda não é certo que Joana Marques deponha em tribunal.

NewsItem [
pubDate=2025-06-18 22:29:59.0
, url=https://observador.pt/especiais/prejuizos-de-quase-200-mil-euros-e-uma-produtora-em-lagrimas-o-segundo-dia-do-julgamento-do-caso-anjos-joana-marques/
, host=observador.pt
, wordCount=2641
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2025_06_18_1256641580_prejuizos-de-quase-200-mil-euros-e-uma-produtora-em-lagrimas-o-segundo-dia-do-julgamento-do-caso-anjos-joana-marques
, topics=[cultura, humor]
, sections=[vida]
, score=0.000000]