observador.ptObservador - 19 jun. 00:05

Autonomia: uma antologia a não esquecer

Autonomia: uma antologia a não esquecer

Se antes o insular olhava com inveja o Continente, hoje, cabe a Portugal, de novo, olhar o Atlântico na procura de inspiração.

A segunda semana de junho, no meio do seu calor tanto provindo das condições climatéricas, como do ambiente político vivido, ou, pelo menos, sobrevivido, detém, este ano, e, até ver, somente neste ano, onde se celebram os 50 anos da Assembleia Constituinte, uma importante coincidência. Na segunda-feira, 9 de junho, celebrou-se o Dia dos Açores e, quando batiam os relógios batiam a meia-noite, o Dia de Portugal. A coincidência, talvez feliz acaso de uma infeliz escolha de dia, como veremos, deve levar a uma nova consciencialização daquilo que significa a primeira efeméride sob a égide do que a guiou, a autonomia, para quem a vive ou viveu, certamente com mais empenho, podendo ajudar a refletir sobre o que concluir da segunda.

Porque neste junho, há 50 anos atrás, não se comemorou da mesma forma. Não falo da prevalência do antigo regime, essa sim finalmente ultrapassada nesta altura, mas nos hábitos que perduravam nos arquipélagos já no último quartel do século passado.

Descobertos no Século XV, os arquipélagos viveram, durante a sua história, uma espécie de abandono condenatório. Não por um particular ódio vivido por quem os administrara, na medida em que não se viveu, nestes planos, os aproveitamentos coloniais presentes em outras secções do mundo, mas simplesmente porque o Continente (assim ainda hoje o nome dado à Metrópole) sempre se organizou de forma a impedir um coeso desenvolvimento das suas regiões arquipelágicas. Foi neste Portugal que se sentiu o duro peso do centralismo, que impediu o desenvolvimento normal das várias gerações que tomaram as ilhas por casa. A prosperidade, rara que era, parecia que vinha em ciclos: vinha o pastel, ia o pastel; vinha a laranja, ia a laranja; vinha o álcool, ia o álcool, mas este por força do continente, sendo, na realidade, um dos primeiros ímpetos autonomistas.

Talvez seja por isto que, em 75, mesmo a RTP era difícil de ver. Talvez seja por isso que, em pleno 1975, a brincadeira que se via nas ruas era a das crianças, sim, mas as que resultavam dos raros navios que atracavam com turistas, pois estes últimos encontravam entretenimento em atirar moedas ao chão para ver o rápido desespero de quem, descalço, raramente via um dinheiro seu.

Mas, a 18 de março de 1976, falava na Assembleia Constituinte o Deputado Jaime Gama, que falava antes do início dos debates que debruçariam sobre o texto proposto pela 8ª Comissão. O seu discurso, e o debate que se alongou pelos próximos dias, já na reta final dos trabalhos da Constituinte, sintetizaram uma premissa, não uma conclusão, inegável: da autonomia como necessidade. Escolheram alguns Deputados, nos trabalhos, entender a autonomia como uma concessão partidária, surgida no meio da confusão do PREC como forma de colmatar supostas conquistas revolucionárias nas ilhas. Nisto, a Assembleia centrou-se num debate fervoroso entre Vital Moreira e Jorge Miranda, com participações de Mota Amaral e Jorge Miranda. A autonomia, para estes últimos, era uma  necessidade que ia ao encontro com reivindicações históricas de quem nestas ilhas habitava.

O tempo, não muito tempo antes, tinha dado razão a estes últimos. Concluídos na oposição ao presente estado de coisas, manifestamente insuficiente, decidiram um conjunto de lavradores açorianos, a 6 de junho de 1975, tomar as ruas de Ponta Delgada em manifestação, num percurso que foi desde o centro da cidade ao moderno “Palácio da Autonomia” exigir a demissão do Governador àquela altura. Sucederam, e, não obstante alguns exageros extremistas, sempre presentes em revolução, o caminho das ilhas estava sedimentado.

É nesta senda, na senda desse dia (esse, sim, dos Açores), que deve ser lembrada a autonomia. Foi uma construção, foi uma reação a algo que não poderia permanecer. Porque se entendeu que era inaceitável permanecer em permanente pobreza, porque não haveria maior vergonha que ser os mais pobres do país mais pobre. Abril também significou este avanço, significou o romper com as respostas lentas que resultavam do centralismo, dotando os arquipélagos de órgãos próprios para poderem, eles, determinar o seu desenvolvimento. A autonomia foi constituída não como forma de desagregação mas como ímpeto de avanço conjunto.

O efeito desta decisão, feita não em gabinetes fechados de São Bento, mas na rua e no espírito de cada qual que habitara no meio do Atlântico, torna-se visível a cada um que as visite hoje. Onde antes se zombava das crianças descalças, hoje atracam milhões de passageiros. Muitos dos estudantes que hoje habitam as várias cidades do país são filhos dos que ainda se lembram do que é uma casa sem eletricidade e canalização, não porque perduram ao avanço do tempo, mas porque o seu caráter recente não permite ofuscar essa vergonha. Essa ideia de “autonomia progressiva”, não só no sentido legal da palavra mas também no sentido de projeto em permanente construção, permitiu que as Regiões (agora) Autónomas acompanhassem o restante país no seu projeto de modernização.

Mas passaram-se 50 anos, a memória coletiva desvanece-se, como se torna óbvio pela história recente. Deixou-se a política entrar em modo de gestão corrente, alheia à coletividade no verdadeiro significado da palavra. Abandonaram-se os projetos a longo prazo, optando-se pelo discurso para o curto prazo. Nesta senda, também sofreu a autonomia, deixando-a entregue, como o país, à instabilidade política, embora poupada das suas piores manifestações, finalmente podendo os insulares dizer que se encontram melhor que o Continente.

Talvez, nestes dias, é esta história de superação que é preciso continuar a contar e a repetir. Uma história de quem vivera permanente isolado pelos quilómetros de oceano e que, mesmo assim, tomou as rédeas do seu destino, permitindo a formação da sua própria vontade e do seu desenvolvimento, nem que demorassem mais séculos. É preciso recordar estes aspetos em quem habite hoje no foco deste texto.

Porque talvez as efemérides seguidas não sejam mera obra do acaso. Talvez estes dois dias seguidos de orgulho possam servir para algo mais. Isto é, mais que servirem para perdurar os debates infrutíferos que perduram os nossos dias, ou, pior, para tentar instituir a vergonha em quem hoje viva a herança, podem servir como aprendizagem do que é necessário. É necessário notar que se pode ir além, como se sonhou há 50 anos por mais, e se conseguiu.

Porque se a Autonomia é uma antologia, também o é Portugal. Avancemos sobre o nevoeiro, sem medo.

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