observador.ptObservador - 19 jun. 00:15

Entre a Cruz e o horizonte: a religião na alma portuguesa

Entre a Cruz e o horizonte: a religião na alma portuguesa

A religião católica não é um mero vestígio do passado. É um elemento vivo da identidade portuguesa.

Num tempo em que a identidade das nações se encontra sujeita a múltiplas recomposições – políticas, económicas, culturais e espirituais – importa regressar às raízes fundantes que moldaram, no longo curso da História, o modo como um povo se compreende e se projeta no mundo. A nossa abordagem opta por fazê-lo pela via da “religião”, que, na sua pluralidade de manifestações e significados, não é apenas um conjunto de crenças, ritos ou doutrinas; é, antes de mais, uma gramática do sentido e de comunhão, uma forma de o ser-humano se situar perante o mistério da vida, os outros e o transcendente.

No caso português, essa raiz é, incontestavelmente, a fé cristã, em particular a sua configuração católica. Este não é um mero dado histórico ou sociológico: é um traço matricial que entrelaça o nascimento da pátria com a gramática da esperança cristã, a construção do bem comum com os valores evangélicos, e a vocação nacional com a missão universal da Igreja. Vamos, pois, debruçar o nossos olhar sobre a centralidade da religião católica na formação da identidade de Portugal, discernindo, nos acontecimentos, figuras e discursos que atravessam os quase nove séculos de história nacional, o fio condutor de uma presença eclesial que deu forma à cultura, inspirou a ação política e infundiu sentido espiritual à aventura portuguesa no mundo. Mais do que um olhar nostálgico sobre um passado sacralizado, pretende-se evidenciar a atualidade dinâmica da fé cristã como força transformadora, geradora de comunhão, justiça e fraternidade universal.

1. Uma identidade forjada na fé
Por tudo isto, a História de Portugal não pode ser compreendida à margem da sua matriz religiosa cristã. Desde a génese do país, o catolicismo desempenhou um papel constitutivo da sua identidade coletiva, moldando a sua organização política, inspirando a sua vocação histórica e estruturando a sua imaginação simbólica. A fundação da nacionalidade portuguesa foi lida, desde cedo, como um ato providencial, inserido no desígnio divino. Não por acaso, D. Afonso Henriques, na pena de Alexandre Herculano (1810-1877), é retratado como um “herói medieval que acreditava lutar não só por si, mas por Deus”.

Esta compreensão teologal da história nacional transparece tamb��m na hagiografia fundacional, como na Vida de S. Teotónio, onde o primeiro santo português (1082-1162) é figurado como expressão de santidade e proteção divina sobre a jovem nação. Assim se funde o destino político de Portugal com a missão espiritual da cristandade.

Uma das obras de referência do padre António Cordeiro.

2. Portugal: uma nação sacerdotal
O padre António Cordeiro (1641-1722), ao descrever os Descobrimentos na sua História Insulana, não os vê como simples aventuras náuticas, mas como resposta à vocação cristã de Portugal: levar a fé aos confins da terra! Neste sentido, a empresa marítima portuguesa é interpretada como prolongamento do mandato evangélico, de cunho apostólico, que faz do país uma espécie de nação sacerdotal ao serviço da expansão da cristandade.

Francisco Suárez (1548-1617), que viveu e ensinou em Portugal, nas universidades de Coimbra e de Évora, no século XVII, embora seja mais conhecido pelo seu impacto internacional, não deixou de influenciar a conceção portuguesa de missão. Suárez, no seu Tratado das Leis e de Deus Legislador, defende a existência de um direito natural universal, baseado na razão e na lei divina, que vincula todos os povos. Esta visão fundamenta a ideia de que a ação missionária portuguesa não deveria ser mero imperialismo, mas antes transmissão de uma mensagem universal.

3. A ética profética da fraternidade
Este encargo espiritual, que se manifesta desde os primórdios da nacionalidade, encontra novo vigor na ação profética de figuras como o Padre António Vieira. Em sermões como o da Primeira Dominga do Advento, Vieira afirma que Cristo não é só Rei de Portugal, mas Rei do Mundo inteiro e, por isso, todo o homem é seu súbdito. A identidade cristã portuguesa é, assim, percebida como universalizante, denunciadora das injustiças e promotora de uma fraternidade transnacional e transcultural.

Esta tensão ética e profética ressurge em momentos-chave da história recente, como na célebre carta de D. António Ferreira Gomes a Salazar, em 1958. Nela, aquele Bispo ergue-se em nome da justiça social e da liberdade eclesial, denunciando os constrangimentos autoritários e propondo uma reforma assente na doutrina social da Igreja.

4. Cultura, tradição e transmissão da fé
É por isso que a religião, enquanto sistema simbólico e transmissor de sentido, cumpre uma função insubstituível na coesão cultural. Como bem o enuncia a mediologia de Régis Debray, a religião não é apenas um discurso sobre o transcendente, mas um modo concreto de prolongar no tempo aquilo que transcende o efémero, permitindo uma transmissão diacrónica que liga gerações, comunidades e narrativas.

A fé cristã, neste quadro, não é apenas crença interior; é cultura, é linguagem, é identidade narrativa que gera opções políticas e modos de ser e estar no mundo.

5. Da memória à missão global
O Padre Manuel Antunes, já no século XX, reafirma esta vocação universalista de Portugal, propondo uma Igreja aberta ao mundo, promotora do diálogo cultural e religioso. Em sintonia com o espírito do II Concílio do Vaticano (1962-1965) e antecipando os caminhos traçados pelo Papa Francisco na Fratelli Tutti, o Padre Manuel Antunes vê a fé como força ética e cultural capaz de construir a paz e a fraternidade num mundo marcado por fragmentações ideológicas e desigualdades sociais.

Nos nossos dias, e com grande impacto em Portugal, o ensinamento do Papa Francisco leva a retomar este fio condutor ao generalizar ideais que preconizam que a espiritualidade cristã é, antes de mais, a arte do encontro. O encontro, não como abstração, mas como prática de proximidade com os desprezados, com os que habitam as periferias existenciais do mundo contemporâneo.

A marca das JMJ 2023, em Lisboa.

6. Portugal, espaço de hospitalidade e diálogo
Portugal tem sido, assim um espaço de diálogo inter-religioso e ecuménico, de hospitalidade aos migrantes e de empenho social concreto. A Jornada Mundial da Juventude em Lisboa (2023) foi um sinal eloquente desta capacidade de acolher e de unir sob o signo da fraternidade cristã.

A ação da Igreja em Portugal – na caridade, no ensino, na saúde e na cultura – continua a testemunhar a relevância pública da fé e a reforçar a sua contribuição para a construção de uma sociedade mais justa e solidária. Neste contexto, a religião é chamada a cultivar, ainda com mais afinco, uma atitude de abertura às diversas sensibilidades humanas e culturais, exercendo uma vigilância crítica sobre os seus próprios erros históricos, para que nunca se confunda fé com hegemonia ou verdade com imposição.

7. Uma herança viva
A religião católica não é, pois, um mero vestígio do passado. É um elemento vivo da identidade portuguesa. Não se trata apenas de um património cultural, mas de uma gramática espiritual que continua a inspirar escolhas, valores, políticas e relações.

Portugal é, assim, mais do que uma nação com história cristã: é um espaço cultural onde a fé se faz vida, encontro e missão. A tarefa do presente é, pois, prolongar esta vocação, redescobrindo, em cada tempo, os caminhos concretos da fraternidade evangélica, como contributo português para a esperança do mundo. A maturidade religiosa manifesta-se, precisamente, na capacidade de conjugar a fidelidade ao Evangelho com o respeito pela liberdade de consciência e pela pluralidade do mundo contemporâneo.

[Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência de Portugal. As opiniões dos autores representam assuas próprias posições.]

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