Observador - 19 jun. 00:09
Quando a liderança perde a graça (de estado)
Quando a liderança perde a graça (de estado)
Está na hora de Trump e Musk (tal como Macron, Sánchez, Lula ou Starmer) compreenderem que a política não é um palco para vaidades pessoais ou disputas de ego, mas uma missão de serviço com peso moral
A tradição católica ensina que Deus concede “graças de estado” àqueles que assumem funções de liderança, proporcionando-lhes os dons espirituais necessários para cumprir as suas responsabilidades. Não por mérito próprio, mas porque a missão exige uma assistência sobrenatural para ser exercida com justiça, discernimento e firmeza. Santo Agostinho e São Tomás de Aquino aprofundaram essa doutrina, destacando que a graça divina opera na vida das pessoas, especialmente quando desempenham funções de autoridade. No entanto, olhando para o estado da liderança política dir-se-ia que essa graça — e o sentido de Estado que a deveria acompanhar — tiraram férias. Longas.
Em Portugal, a descredibilização dos representantes políticos tornou-se comum — não por preconceito popular, mas por mérito dos próprios. O actual Presidente da República, tornado Presidente-Rei por ânsia de protagonismo e carência de contenção, transformou a magistratura suprema num palco pessoal. Multiplicam-se os episódios insólitos: declarações levianas a comer gelados em Belém enquanto o país atravessava crises políticas sérias; viagens internacionais de utilidade nula, sem objectivos claros, sobrecarregados de custos generosos para o erário público. A presidência deixou de ser uma referência de equilíbrio e passou a ser um reality show ambulante. Como se não bastasse, o putativo candidato, declarou, com semblante sério, que decidiu candidatar-se porque Donald Trump estava na Casa Branca. Para o bem da sua candidatura, talvez o silêncio seja o seu melhor conselheiro.
Na Europa, a França de Emmanuel Macron tornou-se um exemplo eloquente de como a ausência de sentido de Estado pode conduzir ao colapso institucional. O presidente francês, cuja figura é cada vez mais associada a uma elite distante e autorreferencial, é acusado de contradizer os valores republicanos que afirma defender. Durante a sua campanha, vieram a público relatos sobre ordens dadas para destruir documentos comprometedores, o que levantou sérias dúvidas sobre transparência e responsabilidade. No terreno, o cenário é desolador: confrontos constantes nas ruas de Paris, viaturas incendiadas como rotina em certos bairros, e uma população que se sente traída por um Estado que falhou em oferecer segurança, ordem e mérito. A resposta do regime não foi corrigir rotas, mas impedir Marine Le Pen de concorrer com plenas garantias — porque estava a ameaçar ganhar. O mérito foi substituído pelo medo, e o sufrágio universal por engenharia institucional.
Em Espanha, país onde vivi uma década, aprendi a reconhecer a nobreza do seu povo e a fragilidade das suas instituições. A degradação do sentido de Nação tomou a forma de um mal mais corrosivo: o cinismo estratégico. Pedro Sánchez, derrotado nas urnas, decidiu manter-se no poder à custa de alianças com comunistas nostálgicos, separatistas condenados e partidos cuja agenda declarada é a desintegração da unidade nacional. O PSOE transformou-se num projecto de sobrevivência pessoal. O resultado é um governo minoritário, sem legitimidade moral, mas com ambição desmedida — que se arroga, com desfaçatez, representar a Europa junto de Xi Jinping ou de falar em nome da Península Ibérica enquanto sacrifica a sua política energética em nome de dogmas. Em Portugal, pagámos o preço dessa arrogância com cortes e apagões, literalmente, fruto de uma evidente má gestão, cuja responsabilidade Sánchez teve o descaramento de atribuir a Vladimir Putin. Espanha, que ambicionava ser pilar de equilíbrio no sul da Europa, tornou-se um laboratório de instabilidade. E Sánchez o seu maestro-chefe.
No Reino Unido, a degradação do sentido de Estado sucede em múltiplas frentes: desde a comédia trágica de Boris Johnson — eleito com a promessa firme de “get Brexit done”, mas que entre festas ilegais, escândalos de bastidores e uma notável incapacidade de execução, conseguiu apenas transformar um mandato histórico num desperdício monumental. Agora com Keir Starmer, um antigo procurador que encena moderação mas traz no bolso o manual do trabalhismo dogmático. O seu governo tem promovido aumentos fiscais brutais — precisamente depois de ter declarado que subir impostos destruiria o crescimento. As consequências são visíveis e quase irreversíveis: êxodo de empreendedores, queda na atratividade internacional do país, ameaças crescentes de deslocalização de investimento e um tecido empresarial encurralado entre burocracia e penalização. Starmer não está a reconstruir o Reino Unido. Está a enterrá-lo.
Mas a ausência dessa graça parece ter-se tornado global, ultrapassando largamente as fronteiras europeias. No Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado por corrupção, embora uma manobra de bastidores tenha anulado a sua pena. A Operação Lava Jato revelou um esquema de corrupção envolvendo a Petrobras, abalando profundamente a confiança nas instituições. A reversão das condenações por parte do Supremo Tribunal Federal levantou preocupações sobre a impunidade e a erosão da credibilidade judicial.
Infelizmente, a lista prolonga-se — marcada por lideranças que traem a missão pública ao colocar ambições pessoais ou partidárias acima do bem comum. Onde faltam prudência, justiça e temperança, não pode haver governo digno nem autoridade legítima.
É neste contexto de vazio moral e político que surge a birra pública entre Donald Trump e Elon Musk. Uma disputa que, além de infantil, reflete sobretudo uma profunda falta de sentido de Estado. Trump, o homem mais poderoso do mundo, e Musk, o homem mais rico do mundo, envolveram-se numa guerra pública de tweets, acusações superficiais e ameaças inúteis. Tudo isto, naturalmente, faria sentido num recreio infantil — não num contexto onde se esperava elevação, serviço público e sentido institucional.
À primeira vista, é até difícil entender como Trump e Musk estiveram algum dia alinhados. Um é político populista e conflituoso, o outro empresário tecnocrata e visionário. Mas ambos partilharam, por momentos, objetivos comuns e causas fundamentais: romper com o politicamente correto, restaurar uma meritocracia real, devolver à América o seu papel económico e militar central. Durante algum tempo, parecia haver a�� uma luz ao fundo do túnel.
Mas tudo colapsou numa disputa absurda, num desperdício sem sentido. O verdadeiro problema não é o entretenimento mediático desta birra, mas sim o que ela implica a longo prazo: mais descrédito na política, mais desconfiança nas instituições e, consequentemente, mais espaço para o crescimento do Estado e menos liberdade individual. Como Hayek alertou repetidamente, quanto mais os cidadãos perdem confiança nos seus representantes, mais clamam por um Estado paternalista, por uma autoridade externa e salvadora — precisamente o contrário do ideal libertário de responsabilidade individual e Estado limitado. É o perigo de um Estado intervencionista que ignora os princípios da liberdade individual e da responsabilidade pessoal: a politização excessiva e a centralização do poder tornam-se ameaças reais à democracia e à prosperidade.
Trump e Musk deveriam saber melhor do que ninguém que o Ocidente atravessa uma crise profunda. Está doente — e a sua regeneração exige mais do que reformas cosméticas: exige uma mudança de paradigma político e social. Foi isso que Leão XIII antecipou no século XIX, ao inaugurar com a Rerum Novarum uma doutrina social ancorada na justiça, na subsidiariedade e no bem comum. É também o que Mises e Rothbard defenderam no século XX ao proporem uma ordem fundada na responsabilidade individual, na livre iniciativa e na limitação do poder estatal. Preferem alimentar o seu ego digital, esquecendo que a autoridade é antes de mais, um serviço e não um palco.
E, enquanto isso, o mundo gira. Xi Jinping consolida o seu totalitarismo, Vladimir Putin explora pacientemente as fragilidades ocidentais, e a Europa, com os seus eurocratas decorativos, persiste em olhar com desdém para os EUA, mesmo enquanto se afunda lentamente na sua própria irrelevância económica e geopolítica.
Esta crise não é, portanto, apenas americana e ameaça traduzir-se numa perda global de confiança nas elites políticas e económicas. Como Habermas já avisara, a legitimidade democrática depende da coerência entre discurso político e prática efetiva. Mas se o discurso é reduzido a tweets infantis e a prática política à mentira descarada, que legitimidade resta à democracia representativa?
Está na hora de Trump e Musk — tal como Macron, Sánchez, Lula ou Starmer — compreenderem que a política não é um palco para vaidades pessoais ou disputas de ego, mas uma missão de serviço com peso moral: a quem muito foi dado, muito será exigido. Que o verdadeiro sentido de Estado implica responsabilidade, coerência e espírito de serviço, princípios básicos que estes líderes parecem ter esquecido, se é que algum dia os conheceram.
Afinal, como dizia Karl Kraus, da Escola de Viena, “a política é a arte de procurar problemas, encontrá-los em toda a parte, diagnosticá-los incorretamente e aplicar os remédios errados”. Macron, Sanchez, Starmer, Lula, Trump e muitos mais cumprem esse ciclo — com zelo e alarde.
Mas o verdadeiro desafio não está em apontar quem erra a seguir — está em encontrar quem tenha a coragem e a consciência para começar a acertar. Santo Agostinho recordava que governar é servir, não dominar. São Tomás ensinava que a autoridade só se justifica se estiver ordenada ao bem comum. Para ambos, a política é um dever moral — não um mero palco de vaidades. Se os líderes não gostam destas ideias na teoria, talvez possam, pelo menos, começar a respeitá-las na prática. Porque a política sem sentido de Estado é só teatro. E o teatro sem verdade, como a história nos ensina, nunca acaba bem.