João Paulo Batalha - 18 jun. 08:21
"Agora vou andando"
"Agora vou andando"
Opinião de João Paulo Batalha
Aconteceu três vezes em poucos dias. No dia 10 de junho, o ator Adérito Lopes foi espancado à entrada do teatro A Barraca, em Lisboa. Já sei que o agressor deu entretanto entrevistas, protegido pelo anonimato, em que nega ter qualquer ligação à extrema-direita e reduz o incidente a uma rixa alcoolizada. Mas não só a narrativa é absolutamente inverosímil, como é sabido que o mesmo agressor era ativo em fóruns online da extrema-direita e que outro dos envolvidos na agressão era um dos condenados pelo assassinato infame de Alcindo Monteiro, noutro sombrio 10 de Junho, em 1995. O advogado do agressor pode bem organizar entrevistas para tentar escapar a acusações de associação criminosa (ou piores), e a milícia pode tentar distanciar-se do seu bode expiatório. Mas só acredita quem quer.
Poucas horas depois, no Porto, duas mulheres voluntárias que apoiam pessoas sem teto foram agredidas por dois homens que, entre outras coisas, fizeram a saudação nazi e as acusaram de ajudar estrangeiros. Poucos dias depois, no sábado, em Guimarães, um militante antifascista foi agredido por mais um neonazi que, segundo queixa que apresentou às autoridades, já o perseguia e importunava há mais de um ano. Eles estão mesmo a sair da toca.
O Governo lá manifestou o seu "repúdio absoluto" pela violência, desde logo a dirigida a Adérito Lopes, que foi a mais mediatizada. A nova ministra da Administração Interna, que todos saudaram como capaz, inteligente e humanista, sublinhou que a agressão era "um ato absolutamente inaceitável num país como Portugal", prometeu policiamento de proximidade para prevenir crimes semelhantes no futuro e deixou o resto com a justiça. Aos jornalistas que tentaram fazer-lhe perguntas, foi igualmente expedita: "Por agora já disse, vou andando".
Percebe-se a pressa de Maria Lúcia Amaral. A pergunta inevitável, como ela bem sabe, é sobre a omissão do primeiro Governo de Luís Montenegro, que apagou do último Relatório Anual de Segurança Interna um capítulo sobre a ameaça de milícias de extrema-direita, que mencionava especificamente o grupo Blood & Honour, precisamente o envolvido nas agressões no teatro A Barraca. Melhor "ir andando" para poupar embaraços. Agora, os tribunais que resolvam.
A purga censória do Relatório de Segurança Interna nunca foi explicada, e precisa de ser, porque, é hoje óbvio, estendeu a estas organizações criminosas um confortável manto de proteção e impunidade. Pior, o próprio primeiro-ministro deu gás aos movimentos, ao embarcar no discurso criminalizador da imigração. Fê-lo ao fazer gala de avisos de expulsão que são uma parte rotineira do trabalho das autoridades, mas que Montenegro, em pré-campanha, elevou a galardão de ação política. Fê-lo justificando pacatamente rusgas indiscriminadas em bairros de imigrantes que não só são inócuas no combate à verdadeira criminalidade, como encorajam a normalização deste tipo de violência. É claro que os resultados das últimas eleições, que elevaram o Chega a líder da oposição, também animam estes bandos criminosos, mas o Governo fez a sua parte.
O resultado está à vista. Hoje mesmo, o último relatório do Comité Europeu contra o Racismo e a Intolerância, do Conselho da Europa, denuncia um "aumento acentuado" do discurso de ódio em Portugal e exige "investigações eficazes" contra este tipo de violência. Mas como, em Portugal, relatórios internacionais são feitos para serem ignorados, o grande sinal de alarme foi a operação de ontem da Polícia Judiciária, que deteve seis membros do Movimento Armilar Lusitano (MAL, a pista está no nome). O grupo, que terá chegado a planear um ataque ao Parlamento, foi apanhado com armas fabricadas com impressoras 3D, inéditas em Portugal. Pior, os detidos incluem, além de elementos ligados ao setor da segurança privada, um chefe da PSP, em comissão de serviço na Polícia Municipal de Lisboa. Sim, há uma infiltração da extrema-direita nas forças policias, que ignoramos por nossa conta e risco.
O segundo Governo de Luís Montenegro tem de dar a cara e assumir as responsabilidades pelas más práticas do primeiro. A complacência tática do PSD, criada e mantida para proveito eleitoral, é perigosa (para não dizer cúmplice) e está a levar-nos na direção errada. Assumam o erro, já, e virem a página. Caso contrário, esta violência organizada que, além das suas vítimas diretas, visa amedrontar todo o país, continuará a normalizar-se. Continuará, como a plácida ministra da Administração Interna, a "ir andando".
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