Joana Andrade - 18 jun. 13:01
Sentinelas da cultura
Sentinelas da cultura
Por mais longe que estejamos da nossa terra, ainda temos as livrarias como refúgios na cidade.
Há um encanto na luminosidade do Noroeste Pacífico, aquela luz que inspirou pintores, cativou escritores e foi explicada por cientistas, porque funde as cores da extraordinária paisagem natural de Vancouver num cenário cinematográfico e quase onírico.
Harbourfront é uma das zonas nobres da maior cidade da Colúmbia Britânica, uma floresta de arranha-céus com amplas avenidas, mas com uma surpreendente tranquilidade à beira-mar.
Os dias são longos no final da Primavera e muito cedo se vêem os corredores e os que passeiam cães, figuras matinais típicas das megalópoles ocidentais. Mais tarde começa a azáfama dos hidroaviões, que circulam como ruidosas aves metálicas, partilhando momentaneamente as águas com embarcações de todos os portes, num pano de fundo arrebatador, onde as montanhas com os picos cobertos pelo branco da neve se destacam.
As extensas cidades norte-americanas não foram pensadas para serem percorridas a pé, mas insisto e verifico que até Gastown o passeio é agradável. Hoje é um bairro trendy, repleto de lojas de souvenirs e restaurantes, com turistas de telemóvel em punho à espera de captar o apito fumegante do curioso relógio a vapor. Mas foi aqui que nasceu Vancouver e o interesse histórico está preservado nos edifícios construídos no final do século XIX e início do século passado.
A cannabis não é apenas legal no Canadá, é para muitos um hábito diário e público. Na minha caminhada atravessei por demasiadas vezes o cheiro insuportável e difícil de evitar da erva, mas os primeiros toxicodependentes que vi, prostrados no chão num estado deplorável, eram consumidores de fentanil.
Os efeitos devastadores desta droga chegaram até a provocar tensões diplomáticas entre os EUA e o seu vizinho do Norte, mas mesmo tendo visto vídeos sobre esta epidemia foi um choque vê-la ao vivo. Há enormes avenidas que se transformam num videojogo onde nos cruzamos com centenas de personagens que se assemelham a zombies. Estas figuras desumanizadas alternam entre três estados. Arrastam-se como se estivessem em câmara lenta, agitam-se em espasmos cadenciados sem sair de onde estão, ou permanecem estáticos, por vezes em posições bizarras, como num yoga macabro.
Enquanto penso como é possível, com a desculpa da liberdade da escolha individual, permitir tamanho problema de saúde pública numa cidade como esta, avisto o meu objectivo.
A entrada da MacLeod’s Books é exactamente numa esquina, mas de fora se percebe que se vai entrar numa área imensa e atulhada de alfarrábios. É o vértice para um vórtice, a entrada num mundo maravilhoso para um bibliófilo e um pesadelo para os obsessivos compulsivos da limpeza e das arrumações. Há pilhas de livros por todo o lado, apesar das estantes a rebentar até ao tecto, e para os leigos na matéria parece que arrombámos um local abandonado há anos. Pelo contrário, cruzo-me com várias pessoas e noto que nenhuma está lá por acaso, muito menos por turismo. Sabem ao que vão, tal como eu. Rapidamente me inteiro do caos organizado e traço prioridades.
Reconheço na ilha central, entrincheirado em livros, Don Stewart, o proprietário da livraria há mais de meio século, que manteve o nome original, mesmo tendo mudado de localização. Está a conversar com um cliente, sugerindo-lhe títulos que este desconhece, porque esta é a função do livreiro, e penso: «Um verdadeiro alfarrabista, alright!»
Na véspera foi o aniversário da morte de Heidegger e é uma boa desculpa para começar na secção de Filosofia. Vejo que o mestre de Todtnauberg está em prateleiras bem altas e acho natural ter de elevar-me para o atingir. Subo a um banco e demoro-me na escolha. Há muita oferta e os limites das companhias aéreas pesam. Da secção de Artes resgato uma biografia de John Singer Sargent, mas os álbuns têm de ficar, e sigo para a Literatura.
Tenho andado às voltas com a figura de Wyndham Lewis e, sem surpresa, descubro-o aqui. A escolha é fácil, porque encontro o «retrato do artista como o inimigo», de Geoffrey Wagner, um dos primeiros estudos sobre a obra daquele que T. S. Eliot considerou «a mais fascinante personalidade do nosso tempo». Mas a pérola é uma edição centenária do seu primeiro romance, Tarr. Lewis era um britânico nascido no Canadá e, por isso, junto-o a Eliot e a Pound, norte-americanos que regressaram à Europa, à Pátria-mãe, física e culturalmente.
Vou pagar e atende-me um jovem alto e sorridente que elogia as minhas escolhas. É sincero e conversamos sobre Lewis e não só. Ao saber que sou português e que nunca lá tinha estado, diz-me que costumava haver três livrarias naquela área, mas que agora há apenas duas e aconselha-me a visita à Paper Hound, um pouco mais à frente. «É mais limpa e organizada», confessa com um olhar cúmplice. «Acredito, mas para quem gosta de livros isto é o paraíso», remato.
Saio e verifico que a zona, muito degradada, já foi vibrante. Notam-se muitas lojas fechadas e alguns edifícios devolutos no meu percurso até à outra livraria, em que me desvio, indiferente, dos zombies.
The Paper Hound Bookshop é um aprumo! De uma explosão dionisíaca passo à ordem apolínea e lembro-me de como se complementam. Esta é uma livraria mais pequena, não apenas ordenada como impecavelmente decorada. Compro um livro em francês, publicado no Québec, sobre os aspectos helvéticos e literários na obra de Jung, que desconhecia. Converso com o proprietário, amável e conhecedor do psicólogo suíço, dizendo-lhe que vou levar o livro para as margens do Lago de Zurique. Sorri e diz-me que vai para o sítio certo. É mais um regresso…
Mesmo num mundo em ruínas, as livrarias são tanto os postos avançados como os últimos redutos em que somos sentinelas da cultura.